Foram 40 dias de negociações entre governo e sequestradores, até que se chegasse ao consenso de quem poderia embarcar em direção ao Chile. O que poderia ser contado como histórias de heroísmo e drama ganha novas cores no documentário Setenta, lançado em DVD pelo Canal Brasil. Diante da câmera, estão 18 ex-militantes que subiram naquele avião rumo a um destino desconhecido. Com poucas lágrimas, muita seriedade e algumas risadas, as histórias começam em aparelhos clandestinos, seguem para o pau-de-arara e partem para países da América Latina (onde muitos caíram em outras ditaduras) e da Europa, onde outros tiveram que conviver com o frio e a solidão.
Setenta é dirigido por Emília Silveira, jornalista e ex-presa política que trabalha com direção de programa de TV. Em 2003, ela soube por um dos personagens do filme que alguns sobreviventes do episódio ainda se reuniam no restaurante Lamas, no Rio de Janeiro. Curiosa para saber como eram esses encontros, ela foi a um, filmou e saiu com a ideia de registrar outras histórias. Dos 25 entrevistados, ficaram 18, todos identificados apenas pelo primeiro nome, remetendo aos codinomes usados por eles na clandestinidade. Sem didatismo ou panfletagem, cada personagem dá seu relato íntimo proporcionando uma grande colagem de ímpetos juvenis, frustrações, revisões pessoais e orgulhos que precisavam ser reacendidos.
“A sociedade brasileira era um grande churrasco dentro de paiol de munição, com cerveja e cachaça. Em algum momento, alguém deixou uma granada cair”, define Wilson Negão em seu depoimento. O filho de militar ri do próprio comentário, assim como Vera ri quando lembra as palavras que usou na hora que teve de atirar contra os militares que invadiram o aparelho onde ela estava com outros companheiros. Sem querer fazer pouco da coragem de décadas atrás, as risadas trazem algo de nervoso e desconfiança.
Com cerca de 80 minutos, Setenta também passa por situações sui generis, como Marcão, que foi torturado por três ex-colegas do colégio militar, ou Brito, preso junto com duas irmãs, primos e a mãe, e denunciado para a polícia pelo irmão. E tem Nancy, americana de nascença, que nunca teve seu passaporte devolvido. Tem ainda Mara, que só entrou para a luta armada depois que teve o sexto filho. Sandra, uma de suas filhas, lembra que, certa vez, estava fazendo prova no colégio quando o professor abriu um jornal e ela viu estampada uma foto sua no colo do pai com um enorme “procura-se” escrito acima.
Contando também com depoimentos de época, recortes de jornais e trechos de filmes, Setenta relembra ainda a história de Tito de Alencar, frade dominicano cearense que morreu na Europa atormentando pelas torturas que sofreu no Brasil. Além de imagens de Tito no Chile, Frei Oswaldo fala do Natal que passou ao lado do amigo, em 1971, ano em que foi deportado, primeiramente, para o Chile e, depois, para a Itália. Três anos depois, seu corpo seria encontrado morto pendurado a uma árvore.
Assim como a Tito, Setenta presta seu tributo a outras vítimas daqueles anos de truculência, como Iara Iavelberg. Ex-namorada de Lamarca e filha de família abastada, ela trocou o conforto de casa pela clandestinidade e brigou por tempos mais tranquilos até os 27 anos, quando morreu durante um cerco policial em Salvador. Abrindo espaço para reflexões e leituras variadas, o documentário encerra apontando para o futuro. “Vivemos num período pós-revolucionário. Quem fez sua revolução fez. Quem não fez por muito tempo não fará mais”, sentencia Maurício. (Marcos Sampaio)
SERVIÇO
Setenta, Coleção Canal Brasil
Direção: Emília Silveira
Preço médio: R$ 29,90
Fonte – O Povo