Para filho de Jango, o Conselho Nacional da Verdade deve ser permanente

‘O Brasil é um país carente de direitos humanos e, muitas vezes, de memória’, diz João Vicente

Dedicado a preservar a legado do pai, o filho do presidente deposto João Goulart, João Vicente Goulart, veio a Porto Alegre para lançar o seu livro intitulado Jango e Eu, que narra a relação dos dois durante o período em que viveram exilados no Uruguai. A história da família Goulart se confunde com a da política brasileira, uma vez que o ex-presidente foi tirado do poder pelo golpe militar em 2 de abril de 1964, dois dias depois de sua conflagração, em 31 de março.
Segundo João Vicente, a obra busca mostrar às novas gerações as dificuldades de crescer exilado em outro país, pelo simples fato de lutar pela democracia. Aliás, o filho de Jango considera que o Brasil dá pouca importância à memória e às medidas de reparação às violações dos direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar (1964-1985).
Apesar de reconhecer a “grande importância” da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o filho do ex-presidente acredita que a CNV – que atuou durante dois anos, coletando documentos e relatos de pessoas atingidas pelas ditaduras brasileiras – deveria se tornar um órgão permanente.
Em entrevista ao Jornal do Comércio, João Vicente traçou um paralelo entre o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e a deposição de João Goulart. “Foi um ataque novo à Constituição, à cultura constitucional, em moldes diferentes do golpe de 1964. Entretanto os atores são os mesmos”, avaliou.
Ele também acrescentou que, nos dois casos, quem promoveu a cassação dos presidentes foi “um Congresso Nacional altamente suspeito, a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e a grande mídia”. O objetivo também seria o mesmo: “desnacionalizar a economia”. O filho de Jango apontou ainda o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como herdeiro da política ligada às “forças populares”, da qual seu pai foi um representante.

Jornal do Comércio – O que o leitor pode esperar de seu livro?
João Vicente Goulart – É um livro que revela a relação de amizade entre um pai e um filho no exílio, no contexto das ditaduras que se espalhavam pela América Latina. A vida no exílio é uma condição muito difícil de ser entendida. Mas espero conseguir mostrar às novas gerações a dificuldade de crescer sem criar raízes no exterior, quando se luta pela democracia, como o Jango lutou.
JC – Qual a sua avaliação da Comissão da Verdade? Cumpriu o objetivo de resgatar a memória das ditaduras brasileiras?
João Vicente – Ela foi muito importante, principalmente se considerarmos que o Brasil é um país carente de direitos humanos e, muitas vezes, de memória. A CNV trouxe, inclusive, a possibilidade de fazermos a exumação do corpo do presidente João Goulart. Sem esse instrumento, não conseguiríamos isso. Lamentavelmente, a comissão não foi transformada em um órgão permanente de direitos humanos, que conseguisse continuar com esses poderes de investigação e reconstituição histórica. Então creio que cumpriu um grande papel, mas deveríamos pensar em uma forma permanente de mantê-la, inclusive para cumprir os acordos internacionais de direitos humanos, do qual o Brasil é signatário.
JC – O que acredita que seria o ideal para dar continuidade ao trabalho da Comissão da Verdade?
João Vicente – Acho que a transformação da CNV em um Instituto de Direitos Humanos Brasileiro – com autonomia de ação – seria o ideal. Inclusive faço parte do Comitê de Acompanhamento da Sociedade Civil da Comissão da Anistia. Temos parados lá 18.000 processos; temos 4.000 militares legalistas que foram caçados e que, até agora, não tiveram suas patentes nas Forças Armadas restituídas. Esse seria um dos assuntos que um instituto de direitos humanos poderia coordenar. Mas isso não deve acontecer neste governo, afinal acabou de nomear o Alberto Goldman para a Comissão de Anistia, um homem que diz ser contra a reparação.
JC – Não vê perspectiva de responsabilização dos torturadores, mesmo com as ações movidas por diversos procuradores do Ministério Público, que usaram materiais da CNV para entrar principalmente com ações cíveis contra membros do Exército?
João Vicente – Na minha opinião, somente uma nova constituinte poderá dar esses poderes (de responsabilização e punição). A nossa Lei de Anistia, que é uma espécie de autoanistia outorgada pelos militares, não reconhece sequer o crime de lesa-humanidade, que não teria prazo de vencimento. Então, na atual estrutura jurídica do Brasil, acho difícil termos uma efetiva resposta aos direitos humanos tão necessários no Brasil.
JC – Alguns fatores que antecederam o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) tiveram semelhança com o período que antecedeu a deposição de Jango, como por exemplo a polarização política. Como avalia a cassação da Dilma?
João Vicente – Jamais pensei que, depois de tanto tempo de exílio, ia presenciar novamente algo como o que aconteceu em 2016. Foi um ataque novo à Constituição, à cultura constitucional, em moldes diferentes do golpe de 1964. Entretanto os atores são os mesmos.
JC – Então, na sua opinião, foi golpe…
João Vicente – Se não foi um golpe militar, foi um golpe midiático-jurídico. E insisto: os atores são os mesmos de 1964.
JC – Quem seriam esses atores?
João Vicente – Tanto no golpe militar que depôs meu pai quanto no impeachment da Dilma, tivemos no mínimo três atores comuns. Primeiramente, os dois momentos envolveram um Congresso Nacional suspeito, seja pelos parlamentares envolvidos em escândalos de corrupção, seja pela fonte de financiamento deles. Também tiveram a participação da Fiesp. E houve ainda, nas duas ocasiões, a colaboração da grande imprensa.
JC – Pode apontar as semelhanças e as diferenças da participação de cada um desses atores no golpe militar e no impeachment, começando pelo Congresso?
João Vicente – Na eleição de 1962, muitos parlamentares do Congresso foram eleitos através do Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática, fundado pelo empresário Ivan Hasslocher, que se considerava um “anticomunista”). Acontece que esse instituto, como revelou o general Hélio Ibiapina em 1998, recebia dinheiro da CIA (Agência Ventral de Inteligência, dos Estados Unidos). Na última vez em que esteve no Brasil, o próprio ex-embaixador Lincoln Gordon declarou que destinou na época US$ 5 milhões para financiamento de campanha de deputados federais e senadores da República, o que hoje corresponderia a mais de US$ 50 milhões. Esses parlamentares – financiados com dinheiro escuso – viabilizaram a fatídica sessão do dia 2 de abril de 1964, presidida pelo senador Auro Moura de Andrade (PSD), quando ele declarou vaga a presidência da República ilegalmente. Em 2016, muitos deputados e senadores que votaram a favor do impeachment estão envolvidos em esquemas de corrupção. Segundo as notícias que têm saído, a lista de políticos beneficiados pela Odebrecht tem o nome de mais de 300 parlamentares. Evidentemente que tem que saber se a empreiteira fez uma doação legal ou não, mas, ao que tudo indica, foi ilegal. Então, assim como em 1964, o Congresso que aprovou a saída da Dilma é altamente suspeito.
JC – E o papel da Fiesp?
João Vicente – O sistema da Fiesp nos traz a recordação de 1964. Naquela ocasião, o presidente da federação chegou a comprar com malas de dólares o comandante do II Exército, o general Amaury Kruel (que aderiu ao golpe no último instante, quando as tropas de Minas Gerais já haviam se mobilizado, em 31 de março). Agora, a Fiesp vem com esse papo de que não vão pagar o pato. Mas quem está pagando o pato é a população, através da cassação dos direitos dos trabalhadores, da diminuição da aposentadoria, da entrega do patrimônio nacional às multinacionais etc. Aliás, essas medidas estão sendo tomadas agora, sob os aplausos da Fiesp, porque antes existia um governo popular que tinha protegido os trabalhadores.
JC – E a mídia?
João Vicente – Depois de janeiro de 1963, quando a população devolve ao presidente João Goulart os poderes presidenciais (o Brasil vivia um período parlamentarista desde 1961), ele convoca um plebiscito para consultar a população sobre as reformas de base. Em contra-ataque, o Ibad comprou redações de grandes jornais brasileiros e emissoras de rádio e televisão para produzirem filmes contra o Jango. Então vemos que alguns métodos não se modificaram, enquanto outros, sim. Por exemplo, trocamos os quepes pelas togas. Naquele momento, essa influência da grande mídia, daquele congresso suspeito, daquela Fiesp que não queria as reformas de base, usaram os militares para dar o golpe. Hoje, estão usando um poder institucional do Brasil, que é o Judiciário, com decisões altamente questionáveis.
JC – O senhor mencionou a participação da CIA em 1964. Durante o governo Dilma, houve aquele episódio em que foram interceptados os e-mails da ex-presidente pelo serviço secreto norte-americano. Acredita que houve uma ação internacional no impeachment?
João Vicente – Por algum motivo, existe espionagem dentro da presidência da República. Sem dúvida, existe essa grande influência (externa), só que hoje não é mais política, como em 1964, mas sim econômica. Acho que os métodos de espionagem e avaliação foram aperfeiçoados. Afinal, caiu a cortina de ferro, caiu o anticomunismo. Atualmente, se produz a debilitação dos países em desenvolvimento através de grandes conglomerados econômicos mundiais que, muitas vezes, têm PIBs maiores que alguns países. Hoje, esses grupos têm interesse no nosso petróleo, a nossa Amazônia Azul, que é a plataforma marítima brasileira. A espionagem passou do setor político para o setor empresarial. As grandes multinacionais, sem dúvida, estão comprometidas com espionagem.
JC – Qual a avaliação do governo do presidente Michel Temer (PMDB)?
João Vicente – O governo Temer é completamente entreguista, está implantando a agenda liberal no Brasil, desnacionalizando a economia brasileira, entregando nossas riquezas para as multinacionais. Quando derrubaram o Jango, usaram o argumento do combate ao comunismo, o que era uma falácia, porque, ao conversar com o Lincoln Gordon, o próprio presidente John Kennedy disse: “sabemos que o partido comunista é incipiente no Brasil”. Apesar disso, usaram essa justificativa para derrubar o governo nacionalista do João Goulart. Para derrubar o governo da Dilma, foi utilizado um argumento jurídico. Mas o interesse é o mesmo: desnacionalizar aquilo que é do povo brasileiro, como o petróleo que está na plataforma. Além disso, o Temer faz uma gestão sem identificação com a população. Afinal, como um governo que chega ao poder na base da conspiração, na base do golpe, do golpe midiático, poderia se identificar com a população? Enquanto não tivermos um presidente legítimo para outorgar as ações do povo brasileiro, não teremos sossego econômico, nem social, nem político.
JC – Hoje, quem seria o herdeiro político de João Goulart? Consegue apontar uma liderança atual que siga a linha trabalhista defendida pelo seu pai?
João Goulart – Acho que o Lula é um líder da mais alta importância. Só que ele tem um partido que precisa rever seus posicionamentos, tem que fazer uma autocrítica neste momento. A esquerda tem setores adesistas, mais interessados no fisiologismo e em cargos do que representar as forças populares. Por isso, gosto de distinguir as forças populares da esquerda. Mas, sem dúvida, surgirão novas propostas e novos movimentos para renacionalizar o País.

Perfil

Filho do ex-presidente João Belchior Marques Goulart e de Maria Thereza Fontella Goulart, João Vicente Goulart nasceu em 22 de novembro de 1956, na cidade do Rio de Janeiro, momento em que seu pai era o vice-presidente da República. Quando ocorreu o golpe militar de 1964, partiu com a mãe e a irmã para a fazenda Rancho Grande, na cidade natal dos pais, São Borja, Rio Grande do Sul. Depois, se mudou com a família para o exílio no Uruguai, onde fez parte do Ensino Fundamental. É fundador e presidente do Instituto Presidente João Goulart. Foi deputado estadual pelo PDT no Rio de Janeiro, entre 1983 e 1986, e integrou o Conselho de Acompanhamento da Sociedade Civil, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Em 1998, assumiu a presidência do Instituto de Terras do Rio de Janeiro (Iterj), a convite do governador Leonel Brizola (PDT). Em 2000, assumiu a Subsecretaria de Agricultura, no estado do Rio de Janeiro, implantando o Banco da Terra, do qual foi presidente.
Fonte – Jornal do Comércio

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *