Como a arte contemporânea brasileira está acessando os arquivos da ditadura

Resgate da memória do período ditatorial no Brasil tem aparecido na produção de artistas de diferentes gerações

Em 2011, o governo da ex-presidente Dilma Rousseff criou a Comissão Nacional da Verdade. Sua finalidade foi a de apurar as violações de direitos humanos cometidas no Brasil sob regimes de exceção entre 1946 e 1988, com foco especial para os crimes da Ditadura Civil-Militar que teve início em 1964.

Ao longo da investigação, foram ouvidas vítimas, testemunhas e agentes da repressão. O relatório final da comissão foi entregue em 2014.

As discussões levantadas no período, assim como o clima político deflagrado pelas Jornadas de junho de 2013, intensificaram a valorização da memória da ditadura, na análise do pesquisador e  professor da Unicamp, Márcio Seligmann-Silva.

Para ele, logo após o período do regime, no qual artistas brasileiros resistiram com obras importantes, houve uma “ressaca” que fez com que a produção se voltasse para outras agendas temáticas.

Mais recentemente, no entanto, alguns artistas brasileiros têm se debruçado novamente sobre o passado ditatorial, fazendo dele tema e, de seus arquivos, matéria-prima. A memória da ditadura voltou a aflorar nas obras contemporâneas, entre 2013 e 2014.

Isso se reflete na curadoria de Seligmann-Silva para a exposição “Hiatus: A memória da violência ditatorial da América Latina”, em cartaz até março de 2018 no Memorial da Resistência, em São Paulo. Dela participam oito artistas.

Também na 20ª edição do festival de arte contemporânea Sesc Videobrasil, em 2017, três obras se propõem a pensar a ditadura: duas do artista Rafael Pagatini e uma de Jaime Lauriano.

Abaixo a lista, a partir das duas exposições, cinco artistas que lidam com o tema e descreve uma obra de cada, construída a partir de arquivos da ditadura.

Clara Ianni

Nascida em 1987, em São Paulo. Sua obra “Detalhes observados”, de 2017, é uma instalação composta a partir da pesquisa dos arquivos que ficavam armazenados no prédio do antigo DOPS, o Departamento de Ordem Política e Social, durante o regime militar. Atualmente, o prédio abriga o Memorial da Resistência, onde a obra está exposta.

FOTO: RICARDO FERREIRA/DIVULGAÇÃO
'DETALHES OBSERVADOS', DA ARTISTA CLARA IANNI, NA EXPOSIÇÃO 'HIATUS' Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/11/20/Como-a-arte-contempor%C3%A2nea-brasileira-est%C3%A1-acessando-os-arquivos-da-ditadura © 2017 | Todos os direitos deste material são reservados ao NEXO JORNAL LTDA., conforme a Lei nº 9.610/98. A sua publicação, redistribuição, transmissão e reescrita sem autorização prévia é proibida.

‘DETALHES OBSERVADOS’, DA ARTISTA CLARA IANNI, NA EXPOSIÇÃO ‘HIATUS’

Fulvia Molina

Molina nasceu em 1945 em Jeriquara, interior de São Paulo. Foi estudante de Biologia da USP na década de 1960, onde vivenciou o movimento estudantil, a resistência à ditadura e perdeu amigos, vítimas da repressão. Molina trabalha há anos com o tema.

A obra “Memória do Esquecimento: As 434 vítimas”, de 2017, consiste em um conjunto de 6 cilindros-tótens em tamanho humano, com retratos de cada uma das 434 vítimas relacionadas no Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Praticamente toda a série “Memória do Esquecimento” gira em torno de fotografias de desaparecidos.

FOTO: RICARDO FERREIRA/DIVULGAÇÃO
TÓTENS DA OBRA 'MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO: AS 434 VÍTIMAS', DE FULVIA MOLINA, EXPOSTA NA EXPOSIÇÃO 'HIATUS'

TÓTENS DA OBRA ‘MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO: AS 434 VÍTIMAS’, DE FULVIA MOLINA, EXPOSTA NA EXPOSIÇÃO ‘HIATUS’

Leila Danziger

Do Rio de Janeiro, nascida em 1962, é autora da Série “Perigosos, subversivos, sediciosos [cadernos do povo brasileiro]”, de 2017.  A obra foi realizada a partir dos livros censurados sob a ditadura. Danziger pregou em uma parede os livros censurados e, em outra, reproduções de rostos de desaparecidos – durante a ditadura e hoje, como Amarildo Dias de Souza. Trata, para além da violência institucional do regime militar, da continuidade dessa violência no presente.

'PERIGOSOS, SUBVERSIVOS, SEDICIOSOS [CADERNOS DO POVO BRASILEIRO]' TRABALHA COM A CENSURA E COM OS DESAPARECIDOS DO PASSADO E DO PRESENTE

‘PERIGOSOS, SUBVERSIVOS, SEDICIOSOS [CADERNOS DO POVO BRASILEIRO]’ TRABALHA COM A CENSURA E COM OS DESAPARECIDOS DO PASSADO E DO PRESENTE

Jaime Lauriano

Lauriano nasceu em 1985, em São Paulo. Desde 2012, usa o passado brasileiro em suas obras, definindo o período colonial e a ditadura militar como dois momentos-chave para compreender a violência institucional no presente, por exemplo o genocídio de jovens negros pelo Estado.

Sua obra “O Brasil”, de 2014, é um vídeo realizado a partir de matérias de jornais entre 1964 e 1968 com propagandas oficiais dos governos federais durante o período militar. O Brasil from Jaime Lauriano on Vimeo.   Rafael Pagatini De Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, também nascido em 1985, Pagatini é autor de “Bem-vindo, presidente!”, obra da série Fissuras, de 2016. A instalação parte da catalogação de anúncios de empresas publicados no jornal A Gazeta, de Vitória, entre as décadas de 1960 e 1980. Trata do vínculo entre a ditadura militar brasileira e a iniciativa privada e do projeto de modernidade do regime, frustrado pela desigualdade social e por desastres ambientais.

 

Rafael Pagatini

De Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, também nascido em 1985, Pagatini é autor de “Bem-vindo, presidente!”, obra da série Fissuras, de 2016.

A instalação parte da catalogação de anúncios de empresas publicados no jornal A Gazeta, de Vitória, entre as décadas de 1960 e 1980. Trata do vínculo entre a ditadura militar brasileira e a iniciativa privada e do projeto de modernidade do regime, frustrado pela desigualdade social e por desastres ambientais.

ANÚNCIOS DE EMPRESAS PUBLICADOS DURANTE A DITADURA NO JORNAL A GAZETA, DE VITÓRIA, COLETADOS PELO ARTISTA RAFAEL PAGATINI

ANÚNCIOS DE EMPRESAS PUBLICADOS DURANTE A DITADURA NO JORNAL A GAZETA, DE VITÓRIA, COLETADOS PELO ARTISTA RAFAEL PAGATINI

Manipulação do arquivo

Para elaborar suas obras sobre a ditadura, Jaime Lauriano se lançou aos arquivos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Foi a partir da Lei da Transparência, sancionada em 2009 pelo ex-presidente Lula (PT), segundo o artista, que o trabalho se tornou possível: “foi só a partir disso que consegui ter acesso aos arquivos, pude comprar direitos, digitalizar e utilizar”.

O apelo do arquivo, para Lauriano, é em parte desnudar sua ficção, a narrativa que constrói. “Do mesmo jeito que manipulo esses arquivos, essas informações, dados e imagens foram manipulados para construí-los”, disse ao Nexo. “Não existe essa noção de realidade quando estamos falando da história, porque a história é construída a partir de um rearranjo de informações.”

“Meu interesse, que perpassa todos os meus trabalhos, era pensar como o Estado [no passado e no presente], em suas mais diferentes formas de ordenamento, utiliza símbolos nacionais para criar um ideário de identidade nacional, e com isso cria também uma identificação entre sociedade e regime para esconder as violências perpetradas pelo próprio regime contra a população” Jaime Lauriano Em entrevista ao Nexo

Diferenças geracionais

A produção de artistas de gerações distintas, para o curador da “Hiatus”, traduz relações diferentes com o tema. Artistas que viveram o período, como Fulvia Molina, estariam mais propensos a representar o trauma, enquanto quem nasceu no período de redemocratização, como Jaime Lauriano, se preocupa também com a permanência, hoje, de traços do regime de exceção.

“É muito interessante como a Fulvia [Molina] tem um respeito gigantesco, e evidentemente justificável, com relação às imagens fotográficas dos desaparecidos. Ela tem um relacionamento muito forte com essas imagens. Não por acaso ela constrói tótens”, diz Seligmann-Silva. “Já a Leila, que é de uma geração posterior, tampa essas imagens, já se distanciando, faz um jogo de ocultamento que tem todo um simbolismo.”

Elaboração simbólica

O atual contexto de valorização da memória ditatorial por uma nova geração brasileira se contrapõe a uma lacuna que se seguiu à redemocratização. “No Brasil, a [Lei da] Anistia de 1979, foi, por assim dizer, respeitada e nunca superada, diferentemente dos outros países [da América Latina]. É um consenso do direito internacional que não se pode anistiar crimes como tortura, são inafiançáveis e imprescritíveis. Manter essa anistia é uma coisa muito conservadora e bloqueia o trabalho simbólico”, disse Seligmann-Silva.

O “trabalho simbólico”, realizado pelos artistas que processam essa memória em sua obra, também estaria conectado à reparação jurídica que não houve.

“Não seria este o lugar da arte, que visaria não apenas a resgatar uma memória, mas sobretudo atualizá-la em um ato estética e politicamente presente, recolocando-a, por assim dizer, em movimento? As manifestações de arte da memória no mundo vêm atualizando os fatos dolorosos que marcaram o século 20 e ainda marcam o nosso século 21” Fulvia Molina No artigo “Arte, memória e direitos humanos”

“As pessoas despertaram para a importância desse passado, de como a ausência dessa inscrição também tem consequências graves. No último ano isso ficou ainda mais evidente, com essa onda de grupos que vão às ruas pedindo ditadura, intervenção militar. Há um enorme desconhecimento que permite a manipulação política”, disse o professor.

Esse “despertar”, para Jaime Lauriano, não tem a ver somente com a realização da Comissão Nacional da Verdade. Para ele em particular, o impacto da comissão se deu “mais pelo que ela não mostrou do que pelo que mostrou”.

“Não que não tenha servido para nada, mas, como a comissão não foi deliberativa, foi consultiva, não conseguiu levar a cabo as potências que ela tinha – de condenação, de reparação a partir de indenizações”, disse. “Ela me motivou a trabalhar para mostrar como até a implementação de uma comissão vem para dar cabo a um apagamento. Assim como a Lei da Anistia, como a Lei Áurea, vem como uma benesse do Estado, mais para poder mantê-lo como aparato violento e repressor do que para reparar essas violências”.

Fonte –  NEXO JORNAL