Legistas são denunciados por falsificação de laudos e ocultação de cadáveres na ditadura

Laudo oficial omitiu marcas de tortura em dois integrantes da ALN

O Ministério Público Federal (MPF) denunciou os ex-legistas Abeylard de Queiroz Orsini e Antonio Valentini por terem falsificado laudos sobre o assassinato de dois integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), movimento armado contra a ditadura militar. Segundo o MPF, as falsificações contribuíram para a ocultação dos cadáveres de Alex de Paula Xavier Pereira e Gelson Reicher, militantes da ALN, e para a impunidade dos autores das mortes.

De acordo com o MPF, os peritos Abeylard de Queiroz Orsini e Antonio Valentini, apesar dos militantes da ALN apresentarem marcas de tortura, feitas quando as vítimas ainda estavam vivas, ao prepararem o laudo de exame necroscópico de Alex e Gelson, ignoraram as lesões de tortura que ele tinha nos olhos e na região do peito. De acordo com a denúncia, os contra laudos realizados depois com base na foto dos cadáveres apontam que as vítimas ainda estavam vivas e em posição inferior aos policiais. O laudo oficial omitiu não apenas a tortura, mas também que a vítima foi executada.

Alex e Gelson, integrantes da ALN, estavam em um fusca vermelho com placas frias quando, no dia 19 de janeiro de 1972, foram tentar contato com outro integrante da ALN, Gilberto Telmo Sidney Marques, que havia sido preso dias antes e, sob tortura, havia entregado à polícia a informação do local do encontro. Ainda de acordo com o MPF, a polícia montou uma campana e quando o carro parou em um semáforo, pediram documentos para os dois militantes.

Alex sacou uma submetralhadora, atirou e matou o policial Silas Feche. Outros policiais, Devanir Antonio de Castro Queiroz, Osvaldo Ribeiro Leão (ambos falecidos) e João Alves dos Santos, não completamente identificado, cercaram o veículo e atiraram na dupla. Na versão oficial, os militantes teriam saído correndo do carro e houve intenso tiroteio. De acordo com o MPF, contudo, a polícia não preservou o suposto local do crime e divulgou nota oficial somente dois dias depois, dois indícios de que esta versão não é a verdadeira.

A versão sustentada pelos familiares das vítimas e pela Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos, após análise dos exames do IML feitos nos corpos de Alex e Gelson, é que os dois foram retirados do carro ainda com vida, provavelmente levados para outro local, torturados e assassinados.

Segundo laudos produzidos por peritos independentes encomendados pela Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão Nacional da Verdade, os corpos possuíam hematomas e escoriações visíveis não apontadas nos laudos oficiais, as quais não eram compatíveis com a versão oficial, pois teriam sido produzidas quando as vítimas ainda estavam vivas.

Na denúncia, o MPF aponta que foi encontrada a presença de sangue nas cavidades do corpo de Alex, indicando que ele teve algum tempo de sobrevida. Além disso, os laudos apontam que Alex recebeu vários tiros no rosto quando já estava caído, que segundo o MPF, é uma característica típica de execução sumária, incompatível com a versão oficial de morte em tiroteio.

O laudo de Alex, apesar dos dois peritos terem tido acesso a sua identidade, foi registrado no nome de João Maria de Freitas, um dos nomes que o militante utilizava para viver na clandestinidade. Alex foi enterrado como indigente na vala comum do cemitério de Perus, o que dificultou a localização da vítima pela família, o que só ocorreu 8 anos depois, em setembro de 1980. A identificação certeira da vítima só foi possível em 2014, após exame de DNA.

Já o laudo de Gelson foi elaborado por Abramovitch (falecido) e Antonio Valentini, que também ignoraram as torturas que ele sofreu antes de ser assassinado. Apesar de conhecerem a identidade da vítima, ambos os peritos o identificaram como Emiliano Sessa.

‘ATOS FORAM INTENCIONAIS’, AFIRMA PROCURADOR DA REPÚBLICA

Os crimes de que são acusados os ex-legistas ocorreram há exatos 45 anos, em 20 de janeiro de 1972. Contudo, para o Ministério Público Federal, tais crimes não prescrevem, pois se tratam de crimes contra a humanidade, praticados num contexto de graves e sistemáticas violações de direitos humanos cometidas pelo Estado contra parte de seus cidadãos com a intenção de eliminar opositores e manter o regime militar no poder.

Para o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, autor da denúncia, não há dúvida que os atos de falsidade ideológica dos médicos foram intencionais.

“A única razão para tais atos era a intenção dos órgãos de segurança, com a imprescindível participação dos médicos legistas ora denunciados, de esconder os corpos das vítimas, de modo a ocultar, consequentemente, os sinais de torturas sofridos por Alex e Gelson, sustentando assim a versão oficial”, afirmou.

Esta é quinta denúncia de falsidade ideológica por manipulação de dados de laudos necroscópicos contra Orsini e a segunda contra Valentini. Contudo, para o MPF, além da falsidade ideológica, neste caso há prova que ambos os legistas sabiam que estavam atestando falsamente que Alex era João e Gelson, Emiliano.

Fonte – O Globo