Brasil bancou Pinochet com dinheiro, comida, armas e diplomatas

Publicado originalmente em 07/02/2021 14h51

O regime militar brasileiro foi central em garantir a sobrevivência do golpe militar no Chile, em 1973. Brasília bancou financeiramente a ditadura de Augusto Pinochet, garantiu aos militares chilenos apoio diplomático na ONU e concedeu armas e alimentos.

A constatação faz parte de uma obra que está sendo lançada nesta segunda-feira pela Cia das Letras e que mergulha o leitor num dos momentos mais sombrios da história diplomática nacional. Em “O Brasil contra a Democracia – A ditadura, o golpe no Chile a Guerra Fria na América do Sul”, o analista internacional Roberto Simon revela não apenas o envolvimento ideológico entre militares dos dois países e os preparativos para o golpe, mas também bastidores inéditos de como Brasília blindou Pinochet durante os primeiros meses de vida do novo regime. “Uma vez sepultados (Salvador) Allende e o socialismo chileno, o Brasil se esforçaria para colocar de pé e proteger a neófita ditadura Pinochet”, constata Simon.

De acordo com o livro, realizado a partir de pesquisas em documentos da inteligência dos dois países e centenas de arquivos diplomáticos, Pinochet inicialmente não contou com o apoio explícito do governo americano, “cauteloso para não se envolver publicamente com os verdugos da democracia chilena”. A defesa do ditador, portanto, seria assumida pelo Brasil.

Caberia ao embaixador brasileiro nas Nações Unidas, Sérgio Armando Frazão, por exemplo, um “um papel ativo” até mesmo na elaboração do discurso do chanceler de Pinochet, Ismael Huerta, na Assembleia Geral da ONU. “Crua na arte da diplomacia, a nova ditadura sul-americana buscara ajuda do experiente Itamaraty para pelear na ONU”, constatou o pesquisador.

“Com a queda de Salvador Allende, a chancelaria brasileira tomou para si a missão de defender a junta chilena na arena da diplomacia global. Era uma tarefa solitária. Os Estados Unidos manobravam com timidez para não dar sinais públicos de apoio a Santiago, enquanto europeus buscavam distância dos chilenos, em meio a tantas denúncias de atrocidades que saiam do Chile”, revela o livro.

Assim, o governo Médici serviria de “advogado do regime Pinochet fosse em fóruns multilaterais, como a ONU, fosse de forma bilateral, com um lobby de bastidores calçado na crescente importância econômica e política que o “Brasil potência” vinha adquirindo”. “O objetivo estratégico brasileiro era conter o isolamento internacional do Chile de Pinochet e assegurar a viabilidade do novo regime”, disse.

De acordo com o livro, embaixadas do Brasil em países como México, Polônia e Iugoslávia — os quais haviam rompido relações diplomáticas com Santiago — passaram a representar os interesses chilenos. Simultaneamente, a área de segurança do Ministério das Relações Exteriores mantinha os demais órgãos de inteligência do regime brasileiro informados sobre a campanha de Santiago para reverter a primeira onda de críticas.

Entre os diversos exemplos do apoio brasileiro ao governo de Pinochet, Simon revela como o embaixador brasileiro em Bonn, João Baptista Pinheiro, ainda trabalhou para convencer o governo social-democrata do chanceler Willy Brandt a não suspender a ajuda a Santiago, apesar da crescente animosidade no país em relação ao novo regime chileno.

Créditos do Banco do Brasil e ajuda bilionária O autor da obra ainda conta como, além de forte apoio diplomático, a proteção brasileira à recém-criada ditadura Pinochet incluiu um auxílio econômico sem precedentes na história recente da política externa do Brasil. “Pinochet e seus aliados, dentro e fora do Chile, compreendiam que a insegurança econômica era a maior ameaça ao novo regime. A economia chilena estava mergulhada em um cenário de hiperinflação, desabastecimento crônico e colapso da produção. O apoio dos chilenos ao novo regime dependeria de uma reconstrução econômica rápida e robusta”, apontou o pesquisador.

Naquele momento do golpe, a inflação oficial ultrapassava 500%, e estudos posteriores que incluem preços no mercado negro colocam a cifra em cerca de 1000%. Seis meses depois de tomar o poder, Pinochet conviveria com uma inflação de 700%.

De fato, passadas 48 horas da morte de Allende, o almirante e o novo ministro da Fazenda, o contra-almirante Lorenzo Gotuzzo, foram ao Banco Central inspecionar as reservas que haviam sobrado no local. Constataram que o país estava quebrado.

O almirante José Merino decidiu, então, convocar “um bom amigo” — segundo suas palavras — ao Banco Central: era o embaixador do Brasil em Santiago, Antônio Cândido da Câmara Canto. O brasileiro, solícito, chegou logo e os dois subiram à sala da presidência do banco, onde o almirante lhe pediu ajuda.

“A junta chilena precisava urgentemente de um empréstimo de uns 200 milhões de dólares para “colocar em marcha todo o aparato estatal”, disse. As linhas telefônicas em Santiago ainda estavam mudas, mas o comandante da Marinha havia ordenado a instalação de uma conexão de telefone na sala da presidência, onde ele e o brasileiro conversavam”, revela a obra de Simon.

“Câmara Canto teria chamado Brasília para comunicar o pedido. Pouco depois, receberam uma resposta afirmativa”, disse. Além de quatro aviões militares com toneladas de alimentos e suprimentos médicos, o Brasil também enviaria um navio petroleiro para ajudar a conter a falta de combustíveis.

Diante do corte no fornecimento de açúcar cubano, o governo Médici também despachou 40 mil toneladas do produto ao Chile. “Para cumprir a promessa, o Brasil recorreria ao açúcar que já estava vendido a outros países e se viraria para honrar os contratos, retirando produto do mercado interno — com a consequência previsível de aumento de preços aos brasileiros”, apontou Simon. “Toda a quantia chegaria às mãos do regime Pinochet até o final de outubro e os chilenos poderiam pagar mais tarde, quando a situação melhorasse”, indicou.

De fato, o que os chilenos obtiveram no Brasil era substancial. Num encontro com o então presidentes do Banco Central, Ernane Galvêas, do Banco do Brasil, Nestor Jost, e por autoridades dos ministérios da Fazenda e das Relações Exteriores, uma delegação enviada por Pinochet saiu com uma ampla ajuda.

Isso incluiria 50 milhões de dólares de crédito financeiro sem nenhum tipo de restrição, com três anos de carência e, após esse período, juros bem abaixo do cobrado no mercado; outros 50 milhões para a compra de bens de consumo duráveis; e 35 milhões para a aquisição de produtos brasileiros a gosto do freguês.

O Brasil ainda decidiu emprestar mais 40 milhões de dólares para Pinochet forrar seus arsenais. “Menos de um mês após a morte de Allende, autoridades chilenas já haviam solicitado à Mercedez-Bens do Brasil a exportação de cerca de 450 veículos militares ao Chile. O pedido foi parar no Conselho de Segurança Nacional, que o aprovou rapidamente. Em janeiro de 1974, a Engesa recebera uma primeira “missão comercial”, extraoficial”, revela o livro.

“Para saciar a voracidade da junta chilena por armas, o Brasil seria obrigado a encontrar soluções criativas”, diz Simon. “Parte da lista de compras entregue por Santiago, sobretudo armas de fogo, não estava disponível, naquele momento, nos estoques da indústria bélica brasileira. A alternativa mais óbvia era fabricá-las sob encomenda, mas a operação alongaria em vários meses o prazo de entrega. E as ditaduras tinham pressa. Brasília preferiu abrir mão de milhares de fuzis fornecidos havia pouco às suas forças por fabricantes nacionais. O Estado-Maior das Forças Armadas ordenou a retirada dos emblemas nas armas que identificavam a propriedade brasileira para que fossem despachadas, às pressas, ao Chile”, completou.

“Somada às linhas de crédito existentes e à oferta de dinheiro na agência do Banco do Brasil em Santiago, o arrimo brasileiro ficaria em cerca de 220 milhões de dólares (quase 1,2 bilhão, em valores atualizados).

Altruísmo?

No Itamaraty e entre os militares, o dinheiro seria seguido por uma série de cobranças. Uma delas foi a exigência de que Pinochet não apoiasse a queixa da Argentina contra a construção de usina de Itaipú. Buenos Aires tentava, na ONU, barrar a obra entre brasileiros e paraguaios.

A pesquisa ainda revela que, em relatórios marcados “Top Secret”, agências da inteligência americana reparavam que o doce auxílio estava longe de ser fruto do altruísmo do Brasil. “A disposição do governo brasileiro de se submeter a uma medida de desconforto econômico [como essa] reflete o desejo de ver a junta militar chilena no poder — um investimento que, sem dúvida, o Brasil acredita que dará futuros dividendos”, analisava a Defense Intelligence Agency, do Pentágono. A CIA concordava: “O Brasil [está] menos preocupado com a economia chilena do que em fortalecer a influência brasileira [sobre o novo Chile]”.

Mario Gibson Barboza, então ministro das Relações Exteriores do Brasil, resumiria a relação: “O Brasil e o Chile estão na mesma trincheira”.

Fonte – UOL/Jamil Chade