Paulo Abrão, secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, fala ao ‘Nexo’ sobre as violações cometidas por governos a pretexto de combater o coronavírus
O remédio legal que alguns governos vêm aplicando contra o coronavírus nos países do continente americano podem resultar em mais danos que benefícios para os direitos humanos.
O alerta foi feito pelo secretário-executivo da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), Paulo Abrão, em entrevista por escrito ao Nexo na sexta-feira (17). De acordo com ele, pelo menos 30 dos 35 países que fazem parte da OEA (Organização dos Estados Americanos) colocaram em vigor algum tipo de legislação especial, que aumenta o poder do Estado e reduz os direitos dos cidadãos, com a intenção manifesta de debelar a pandemia.
O brasileiro, que é doutor em direito e já foi secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão Nacional de Anistia no Brasil, hoje coordena, em Washington, o trabalho de um dos dois braços da OEA para a promoção e a proteção dos direitos humanos no continente americano.
“O contexto de excepcionalidade não pode se consolidar como uma espécie de nova normalidade”, disse Abrão, a respeito da crise em curso. “É necessária uma ampla vigilância para que a crise da pandemia não se transforme em uma crise generalizada de direitos humanos.”
Pelo menos sete países latino-americanos aprovaram leis ou tomaram atitudes que criminalizam e preveem pena de prisão para crimes de opinião durante a pandemia, o que representa risco de perseguição política a jornalistas e opositores. “O uso do direito penal contra a liberdade de expressão é uma epidemia dentro da pandemia”, diz o secretário executivo da Comissão Interamericana.
Ele prevê ainda que o peso da pandemia – tanto sanitário quanto econômico – não será distribuído de maneira igualitária entre os países e nem dentro de cada país, cabendo aos mais pobres um fardo mais pesado. Abrão diz que é preciso que os Estados tratem com cuidado especial os mais vulneráveis, e adaptem suas políticas aos mais pobres e excluídos.
Quantos dos 35 países-membros da OEA estão implementando leis especiais, que ampliam os poderes dos governos em nome de combater a pandemia? Há riscos aos direitos humanos no uso dessas leis?
PAULO ABRÃO Diversos Estados da região declararam “estados de emergência”, “estados de exceção”, “estados de catástrofe por calamidade pública” ou “emergência sanitária nacional”, através de decretos presidenciais ou normas de variadas naturezas. As suspensões de garantias e direitos devem ser notificadas de acordo com o artigo 27 da Convenção Americana. Apenas dez países formalizaram: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Panamá e Peru. Porém, nosso mecanismo de monitoramento identificou até o momento a existência de distintas regras de emergência vigorando em quase 30 países.
Cabe aos Estados o ônus de provar que as medidas adotadas são estritamente necessárias para a sociedade democrática, que satisfazem o princípio da legalidade, que são adequadas para atingir o objetivo de proteger a vida e a saúde pública, que não existem meios menos nocivos para alcançar esses mesmos objetivos, e que a restrição causada não é mais prejudicial que o benefício obtido. Para serem legítimas, as medidas de exceção não podem ser genéricas ou dirigidas a suprimir um catálogo indefinido de direitos, nem podem ser utilizadas para justificar o uso arbitrário da força ou a supressão do direito de acesso à justiça, nem podem ter um tempo de duração infinito. Outros limites são os direitos que não são derrogáveis pelo direito internacional: o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica; o direito à vida; o direito à integridade pessoal e a proibição de tortura, tratamento desumano, cruel e degradante; a proibição de escravidão e servidão; o princípio da legalidade e da retroatividade; liberdade de consciência e religião; proteção da família; o direito a um nome; os direitos das crianças; o direito à nacionalidade e os direitos políticos.
Entendemos que o contexto de excepcionalidade não pode se consolidar como uma espécie de nova normalidade. É necessária uma ampla vigilância para que a crise da pandemia não se transforme em uma crise generalizada de direitos humanos. Dessa forma, cientes de que certas restrições possam ser permitidas, publicamos a Resolução 01/2020 sobre a “Pandemia e os Direitos Humanos”, estabelecendo os requisitos materiais e formais que os estados devem cumprir. Ali também estão 85 recomendações que servem de guia para uma aplicação adequada de regras e declarações de emergência no contexto da atual contingência. Para o direito internacional, o objetivo da proteção à saúde não pode ser invocado de maneira ambígua ou abusiva para desconsiderar as obrigações dos Estados em relação aos direitos humanos.
Fonte – NEXO JORNAL LTDA.