Guerrilha do Araguaia: uma guerra interna

Entrevista especial com Leonencio Nossa “O extermínio no Araguaia foi uma política de Estado”, aponta o jornalista. Confira a entrevistas.


“A guerrilha foi mais um momento da história de refluxo do país no tempo. É a ilustração máxima de um Estado que não aceita o diálogo e promove uma guerra interna”. É assim que o jornalista Leonencio Nossa resume a Guerrilha do Araguaia, tema de seu livro Mata! – O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia (São Paulo: Companhia das Letras, 2012). Após pesquisar a história do movimento guerrilheiro na região amazônica durante dez anos e ouvir mais de 150 fontes, entre familiares de guerrilheiros e militares, ele enfatiza que o “movimento armado do PCdoB pode ter sido motivado pelo clima da Guerra Fria, mas a repressão à guerrilha e à população do sul paraense tem suas raízes na formação do Exército e na formação do país”. Na avaliação dele, a Guerrilha demonstra que “a história brasileira não tem raízes em Moscou, Tirana ou algum centro de formação militar mantido por Washington. A barbárie na repressão ao grupo armado e a formação de vítimas e algozes podem ser entendidas a partir da análise de outros capítulos dramáticos da história nacional”.

Ao investigar pontos polêmicos da história da Ditadura Militar e da Guerrilha do Araguaia, Nossa assinala que a “chegada ao poder a partir de um foco no campo, muito citado nos estudos do Araguaia, não é preciso na definição do que ocorreu na Amazônia”. E dispara: “O Araguaia não era apenas o início de uma marcha revolucionária. A região era um campo de potencialidades econômicas e uma área estratégica nacional, mais que um terreno para o começo de uma caminhada rumo a um novo modelo político para o país e o mundo”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o jornalista esclarece que a Guerrilha do Araguaia foi uma das atrocidades da Ditadura Militar brasileira, e, ao resgatar o histórico de militares como Curió, demonstra as transformações do Estado durante o período militar. “Curió é um personagem complexo, que vira homem de destaque não apenas no tempo da repressão à guerrilha, mas nos períodos de conflitos agrários, do surgimento do garimpo de Serra Pelada e, mais recentemente, de eleições diretas e de disputa democrática pelas prefeituras no Pará. A metamorfose do personagem é a metamorfose também do Estado brasileiro”.

Leonencio Nossa (foto abaixo) é graduado em Jornalismo pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.  Também é autor de Viagens com o presidente (Rio de Janeiro: Record, 2006), escrito com Eduardo Scolese, e Homens invisíveis (Rio de Janeiro: Record, 2007). Atualmente é jornalista do jornal O Estado de S.Paulo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Depois de pesquisar a Guerrilha do Araguaia durante dez anos, quais são suas impressões do que foi esse momento da história brasileira? A partir do contraponto de diferentes fontes, é possível compreender o que foi a Guerrilha?

Leonencio Nossa – A guerrilha foi mais um momento da história de refluxo do país no tempo. É a ilustração máxima de um Estado que não aceita o diálogo e promove uma guerra interna. O contraponto de diferentes fontes é fundamental para chegarmos próximos do que foi a guerrilha. A compreensão desse momento histórico, porém, é algo muito difícil.

IHU On-Line – Como o Araguaia nos ajuda a compreender melhor a história do Brasil e também da ditadura brasileira?

Leonencio Nossa – Quando você olha para o Araguaia passa a enxergar Canudos ou Balaiada num tempo de TV em cores. O movimento armado do PCdoB pode ter sido motivado pelo clima da Guerra Fria, mas a repressão à guerrilha e à população do sul paraense tem suas raízes na formação do Exército e na formação do país. Por isso procurei levantar histórias familiares de guerrilheiros e militares – aliás, acredito que a busca das origens de um personagem nos salva do maniqueísmo. A história brasileira não tem raízes em Moscou, Tirana ou algum centro de formação militar mantido por Washington. A barbárie na repressão ao grupo armado e a formação de vítimas e algozes podem ser entendidas a partir da análise de outros capítulos dramáticos da história nacional.

IHU On-Line – Como a esquerda brasileira viu a iniciativa da Guerrilha do
Araguaia?

Leonencio Nossa – Naquele momento, a esquerda e o movimento de combate à ditadura estavam fragmentados. A guerrilha surge, aliás, de um racha no PCB. Uma ala do partido não aceitava a luta armada. Outra decidiu optar pela guerrilha. Mas entre os que apostavam na luta armada, muitos não acreditavam que era viável no Brasil a implantação de guerrilhas no modelo cubano e chinês de tomada do poder. Não houve um comando geral entre os que decidiram participar da luta armada. Houve, na verdade, uma sucessão de dissidências, de formação de novos grupos. A repressão, no entanto, sempre foi centralizada.

IHU On-Line – Quais eram as influências ideológicas fundamentais da Guerrilha do
Araguaia?

Leonencio Nossa – Os organizadores da Guerrilha do Araguaia se diziam inspirar no modelo maoísta, até porque tiveram certo apoio de Pequim – cursos rápidos para militantes brasileiros em escolas militares chinesas. Mas, quando se analisam o processo de desenvolvimento da guerrilha e a trajetória pessoal de cada um dos seus integrantes, percebe-se que não há a escolha de um modelo único. O grupo era formado por maoístas, stalinistas, trotskistas, neopositivistas. Mesmo a ideia do foco, a chegada ao poder a partir de um foco no campo, muito citado nos estudos do Araguaia, não é preciso na definição do que ocorreu na Amazônia. O Araguaia não era apenas o início de uma marcha revolucionária. A região era um campo de potencialidades econômicas e uma área estratégica nacional, mais que um terreno para o começo de uma caminhada rumo a um novo modelo político para o país e o mundo.

IHU On-Line – O que a Guerrilha do Araguaia demonstra sobre o presidente Emilio Garrastazu Médici?

Leonencio Nossa – No livro, não procurei demonizar personagens. É impossível não reconhecer, porém, que Médici e sua equipe de governo, naquele momento histórico, optaram pela barbárie. O extermínio no Araguaia foi uma política de Estado. Médici é a figura que está no topo do organograma da repressão, sendo substituído depois por Ernesto Geisel.

IHU On-Line – Você teve acesso aos arquivos de Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió. O que este material revela sobre a atuação de Curió na Ditadura Militar e na Guerrilha do Araguaia?  De modo geral, o que os arquivos que você pesquisou demonstram sobre a trajetória política e militar dele?

Leonencio Nossa – O Major Curió ilustra uma geração que sucedeu os pracinhas, homens que estiveram na Segunda Guerra, ainda que na condição de coadjuvantes, e estabeleceram um paradigma difícil de se igualar. Os militares que sucederam os pracinhas vão para o Araguaia com a missão de colocar em prática a política de Médici e Geisel. Curió é um personagem complexo, que vira homem de destaque não apenas no tempo da repressão à guerrilha, mas nos períodos de conflitos agrários, do surgimento do garimpo de Serra Pelada e, mais recentemente, de eleições diretas e de disputa democrática pelas prefeituras no Pará. A metamorfose do personagem é a metamorfose também do Estado brasileiro. No mercado, há muitos livros que retratam apenas a guerrilha. Eu queria falar do Bico do Papagaio, de muitas guerrilhas, de uma história de violência que começou antes do movimento armado do PCdoB e continua até hoje.

IHU On-Line – Ao pesquisar o arquivo de Curió, encontrou informações sobre a participação dele na Encruzilhada Natalina, no Rio Grande do Sul, quando ele acampou em frente a um acampamento de sem-terras, em Ronda Alta, para desarticular o movimento?

Leonencio Nossa – O movimento na Encruzilhada Natalino está bem documentado no arquivo. Mas, antes de ter acesso a esses papéis, percorri o norte gaúcho para reconstituir esse momento importante na história do movimento social brasileiro. Natalino é o nascimento do MST, o encontro de muitos conflitos reprimidos no Rio Grande do Sul desde o século XIX. O teste de fogo dos sem-terra vai ocorrer longe de Ronda Alta, justamente no sul do Pará, com o massacre de Eldorado, em 1996.

IHU On-Line – Além do testemunho de Curió e seus documentos, qual é a outra versão da história? Quem são os demais personagens retratados?

Leonencio Nossa – Ouvi 153 pessoas, muitas delas moradoras do Araguaia. Sei que é difícil para alguns entenderem que cidadãos anônimos – ribeirinhos, mulheres de cabarés, garimpeiros – podem ser fundamentais para uma história. Não faço aqui uma defesa da história dos “oprimidos” ou algo parecido. Procuro mostrar o homem simples do Araguaia com toda sua carga dramática, suas qualidades e seus defeitos. No caso de histórias que despertam muitas paixões e polêmicas, o modelo que leva em conta o testemunho de apenas meia dúzia de depoentes está saturado. É preciso recorrer a dezenas e até centenas de testemunhas. Também me parece ultrapassado o jornalismo que determina que a história só pode ser contada por um presidente, um general, um artista. É preciso fugir de memórias de heroísmo, manipuladas. O Araguaia é um mosaico de mais de mil personagens. Eu poderia falar de um deles ou de todos. A modernidade nos dá as duas opções. Não cabe a um repórter, no entanto, a decisão de escolher o número de protagonistas de uma história. “Mata!” é  um livro de mais de mil protagonistas.

IHU On-Line – Que aproximações e diferenças percebe entre a Guerrilha do Araguaia e as guerrilhas de Canudos e Cabanada?

Leonencio Nossa – A Guerrilha do Araguaia é um movimento que é idealizado fora da Amazônia, embora muitos homens da região tenham aderido. Já Canudos e a Cabanagem são conflitos de pessoas da terra, do Nordeste e do Norte, respectivamente. Nesse sentido, Canudos é até mais da terra que a Cabanagem, que contou com lideranças de Belém. Nesses dez anos de pesquisas, foi possível perceber que a população que sofreu as consequências do combate à guerrilha no Pará descendia de rebeldes ou vítimas de conflitos do tempo da Colônia, do Império e do começo da República. Agora, acredito que as semelhanças entre o Araguaia e Canudos e Cabanagem, movimentos de períodos distintos, se acentuam na forma como foram reprimidos.

IHU On-Line – Havia uma conexão direta entre os movimentos guerrilheiros na América Latina? Existiu uma “linha mestra” de pensamento entre suas práticas?

Leonencio Nossa – Alguns grupos guerrilheiros no país tiveram conexão com governos e movimentos revolucionários de países vizinhos, com menor ou maior intensidade. O Movimento de Libertação Nacional, o Molipo, por exemplo, foi formado por exilados brasileiros em Cuba que tiveram apoio do regime de Fidel Castro. Na América Latina, há registros de ligações entre as esquerdas brasileira, chilena, argentina e uruguaia e uma rede de solidariedade entre exilados. No entanto, é preciso observar que, no momento mais cruel da repressão, essas ligações não foram suficientes para fazer frente ao poderio dos governos militares.

IHU On-Line – O grupo terrorista alemão Baader-Meinhoff se dizia influenciado pelos
Tupamaros, embora sua linha de ação fosse bastante diversa. Num contexto internacional, como podemos compreender a conexão e inteligentsia entre a esquerda revolucionária?

Leonencio Nossa – Os dramas sociais da América Latina alimentaram os discursos dos movimentos estudantis na Europa, que estavam entrelaçados com grupos guerrilheiros como o Baader-Meinhoff. Pelo lado dos movimentos guerrilheiros latino-americanos, em especial os brasileiros, o que ocorria na Europa indicava que a tendência, o caminho, era a luta armada. Para quem se interessou apenas em revelar o humano na barbárie dos anos de chumbo, não foi possível enxergar uma conexão, uma inteligentsia, entre as esquerdas no momento mais crucial, ao menos para mim de toda essa história trágica, o momento em que jovens estavam sendo caçados na Amazônia e nas cidades brasileiras. As comunidades de latinos exilados na Europa e suas influências na imprensa e na opinião pública do velho continente não evitaram a barbárie no Brasil. As conexões externas da Guerrilha do Araguaia, movimento armado que é o tema central do meu livro, tão associado à Albânia e à China, eram bem frágeis, praticamente inexistentes. Seus líderes criticavam Fidel e idolatravam os chineses. Mas, enquanto as lideranças da guerrilha esperavam ajuda de Pequim, o governo chinês já negociava acordos comerciais com os militares brasileiros.

IHU On-Line – Qual é a influência da obra “Guerra de guerrilhas”, de Che Guevara,
nos movimentos guerrilheiros dos anos 1960 em diante?

Leonencio Nossa – É um estudo que faz parte da bibliografia usada por guerrilheiros urbanos e rurais no Brasil. Mas vale observar que a luta armada brasileira adquire características nacionais, uma cor brasileira. Procurei no meu livro deixar de lado a guerra fria para entender as raízes nacionais da Guerrilha do Araguaia. É possível enxergar nesse e em outros movimentos guerrilheiros conexões com episódios mais antigos da história nacional. É uma questão de gosto pessoal. Gosto de história do Brasil.

IHU On-Line – Considerando sua pesquisa nos últimos dez anos para compreender parte da história da ditadura militar brasileira, como avalia a Comissão da Verdade? Quais os limites e desafios da comissão nesse processo de compreender o que aconteceu nesse período da história brasileira?

Leonencio Nossa – Meu objetivo era apenas contar uma história, elaborar uma narrativa que despertasse a atenção do leitor. Sempre tive a atenção voltada para a busca de histórias humanas. Por formação, sempre procurei acreditar no conjunto da sociedade. E só posso torcer para que as pessoas se interessem por uma história que sempre me fascinou.

IHU On-Line – Como percebe o diálogo entre as Forças Armadas e o Estado democrático? Por que os presidentes eleitos após a democratização preferiram não “mexer” com os militares?

Leonencio Nossa – A questão da memória da ditadura não é uma demanda da maioria da sociedade. O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu a morte de adversários do regime e chegou a criar uma lei de reparação, que foi desvirtuada de sua finalidade e virou uma farra com dinheiro público. A política de reparação não atende, por exemplo, camadas mais humildes da população, que também sofreram a violência do Estado. Por sua vez, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou claro que manteria os arquivos fechados, como seus antecessores. A consolidação do regime democrático, a abertura dos arquivos, parece não interessar setores de correntes ideológicas diferentes.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Leonencio Nossa – Muitos descrevem o Brasil a partir de São Paulo, do Rio ou de Brasília. Eu respeito essa visão que pode ter origem na ideia de que os bandeirantes ultrapassaram a linha de Tordesilhas e foram os únicos a inventarem a nação. É possível, no entanto, fazer uma leitura de Brasil, por exemplo, que valoriza o boi como criatura fundamental na ocupação do Nordeste e relembra o movimento frenético dos portos de São Luís e de Belém, no tempo da colonização, de onde saíram as expedições de portugueses, espanhóis, franceses e holandeses para desbravar os sertões amazônicos. É possível fazer uma leitura do Brasil a partir do homem do Araguaia, do homem de qualquer canto do país. É preciso buscar novos caminhos jornalísticos, ir ao extremo da reportagem, usar todos seus recursos para evitar a visão tediosa e, algumas vezes, limitada de país.

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