Como um passarinho

Joana é filha de Gustavo Buarque Schiller, o sobrinho da amante do ex-governador Adhemar de Barros. Gustavo foi quem articulou com a guerrilha o roubo de um cofre, na mansão onde morava, com US$ 2,5 milhões dentro. Joana tinha apenas um ano e oito meses quando Gustavo morreu. Hoje, aos 29 anos, ela encaixa as peças que encontra com a história do pai, para melhor incorporá-lo à própria vida

LAÇOS DE FAMÍLIA – Gustavo com Joana, recém-nascida, em praia da cidade de Imbé, no Rio Grande do Sul

Joana estava com quase 4 anos quando explicou para a mãe de uma amiguinha por que não tinha pai: “Ele estava na janela. Passou um passarinho voando. Ele voou atrás do passarinho”. Enquanto vasculha o passado em uma caixa de fotografias, Joana Rocha Schiller, 29 anos, escuta entre surpresa e emocionada o relato de sua mãe, Lúcia. “Engraçado, não me lembro de ter inventado essa história”, diz Joana. “Mas eu era muito pequena.” Ela era ainda menor quando perdeu o pai, no Rio de Janeiro. Tinha um ano e oito meses. Pouco depois, mudou-se para Porto Alegre, cidade da família materna, onde mora até hoje. Com a distância e o decorrer do tempo, os vínculos com a família paterna ficaram cada vez mais tênues. Joana, no entanto, tem uma imensa curiosidade sobre tudo o que diz respeito ao pai, Gustavo Buarque Schiller, e aos movimentos de resistência ao regime militar. De vez em quando, ela encontra uma nova peça para o quebra-cabeça que vem montando há tempos com a história do pai. Foi o que aconteceu durante entrevista à Brasileiros, que entregou a ela a cópia de um documento com pistas sobre a personalidade de Gustavo, além da reprodução de 38 certificados escolares de Prêmio de Honra amealhados por ele entre abril de 1958 e junho de 1965. Um deles mostra que, em maio de 1963, Gustavo ganhou o primeiro lugar em Francês, Inglês, Canto, Matemática, Ciências, História do Brasil, Geografia e Religião.“Essa parte de tirar primeiro lugar na escola ficou toda com ele. Não herdei nada”, brinca Joana.

Os papéis fazem parte do processo 38.358, do Superior Tribunal Militar, em Brasília. O documento que descreve Gustavo é um auto de inquirição de testemunha, lavrado em 15 de maio de 1970, na 1a Auditoria da Aeronáutica, no Rio de Janeiro. Dona de um sorriso aberto e afeita a comentários espirituosos, Joana fica séria quando começa a ler em voz alta o depoimento do médico Eleuthério Brum Negreiros, que cuidava de Gustavo desde os 4 anos, por causa de uma asma brônquica. “Nunca soube que ele teve asma”, comenta Lúcia, interrompendo por um momento a leitura da filha. Convocado pela defesa de Gustavo, que havia sido preso dois meses antes, o médico atesta a “excelente moral” do garoto e diz acreditar na “bonita carreira” que ele teria pela frente.

Reprodução/Arquivo pessoal

AFETO – Em Porto Alegre, Joana revê fotografias e documentos do pai, entre eles a carteira de identidade argentina falsa

No depoimento, o médico também conta que Gustavo tinha, desde muito cedo, grande preocupação com o mundo em que vivia. À medida que crescia, eles passaram a conversar sobre política. Em uma das últimas consultas, o médico achou as ideias do paciente “um pouco avançadas para um jovem, na época com 16 anos”, por se preocupar “sobretudo com a justiça social e o drama do Nordeste”. Gustavo não aceitou os argumentos de que os mais velhos tinham feito o que podiam para deixar aos jovens um mundo melhor. Garantiu que se o médico tivesse acompanhado o drama dos retirantes no livro Seara Vermelha, de Jorge Amado, e “visse matar o gatinho da criança para comer”, ele e a sua geração teriam feito “alguma coisa de mais positiva”. Na verdade, Gustavo se referia à gata Marisca, que, no romance de Jorge Amado, foi sacrificada para aplacar a fome da família da menina Noca, que também morreu durante a fuga da seca.

Cofre camuflado

 

Reprodução/Arquivo pessoal. Passaporte tirado por Gustavo depois da Lei de Anistia

Joana, ainda muito compenetrada, termina de ler o testemunho do médico. “É meu pai, mas parece tão distante”, diz. “Pelo que me contam, ele tinha mesmo essa profunda inquietação, além de muita garra para atingir seus objetivos.” O fato é que Gustavo fez o que considerava correto, um ano e poucos meses depois da conversa relatada pelo médico. Aluno do ensino médio no Colégio Andrews, no bairro Humaitá, no Rio de Janeiro, Gustavo acionou seus contatos no movimento estudantil e chegou até o sociólogo mineiro Juares Guimarães de Brito, da organização clandestina VAR-Palmares, a mesma à qual pertencia a presidenta Dilma Rousseff. Revelou que na mansão em que vivia com a família, no bairro de Santa Teresa, tinha um cofre abarrotado de dólares. A fortuna, disse Gustavo a Juares, era fruto de corrupção. Estava guardada em sua casa a pedido de Anna Benchimol Capriglione, amante do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros. Um dos irmãos de Anna, o cardiologista Aarão Bulamarqui Benchimol, era casado com Yole, tia materna de Gustavo, e também vivia na mansão. Gustavo revelou a existência de outros cofres, um deles guardado em Copacabana, no apartamento do irmão mais velho de Anna, o capitão de mar e guerra José Burlamarqui Benchimol.

Pelas dificuldades logísticas em promover ações simultâneas, a guerrilha decidiu “expropriar” apenas o cofre da mansão de Santa Teresa. O minucioso planejamento da ação foi feito pelo sociólogo Juares e incluiu conferir o croqui da propriedade, desenhado por Gustavo. Para lá foi despachado o secundarista Carlos Minc, atual secretário do Ambiente do Rio de Janeiro, como se estivesse fazendo uma pesquisa de opinião pública. Ele deveria observar cada detalhe do imóvel, enquanto simulava perguntas sobre a telenovela Beto Rockfeller, o grande sucesso da época. Na propriedade rodeada por árvores, construída no alto de uma colina, trabalhavam 11 empregados e viviam 12 integrantes da família. Por casualidade, Minc foi atendido justamente por Gustavo. Como não sabia que a guerrilha tinha um informante dentro da casa, o falso pesquisador não entendeu nada quando aquele que considerava representante da mais alta burguesia desancou as novelas em geral, classificando-as como “alienantes do povo”. Apesar da surpresa, Minc saiu de lá com os detalhes básicos do croqui conferidos.

Às 15h30 da sexta-feira 18 de julho de 1969, um comando com 13 guerrilheiros da VAR-Palmares começou a ação que entraria para a história como o mais espetacular roubo promovido pela luta armada no Brasil. Uma hora antes, Gustavo tinha mergulhado na clandestinidade. Seus pais acreditavam que ele saíra para passar o final de semana com amigos em Teresópolis, mas o secundarista se preparara para uma viagem muito mais demorada. Sabendo que em algum momento a polícia iria em seu encalço, tratou de dificultar-lhe o trabalho. “Gustavo teve a preocupação de levar consigo todas as suas fotografias, inclusive as que estavam com sua mãe. Mais ou menos 15 dias antes do roubo, já distribuía suas roupas entre os empregados”, escreveu três meses depois o coronel Agricio de Faria Pimentel, no Inquérito Policial Militar que investigou o roubo.

 

Reprodução/Arquivo pessoal

EXÍLIO – O pai de Joana em Paris, onde estudou Sociologia e Economia, e começou a escrever uma tese de doutorado

Treze guerrilheiros participaram diretamente da ação, mas apenas o sociólogo Juares sabia do papel e da identidade de Gustavo. “Juares só nos avisou que na mansão tinha uma ‘área próxima’. Era como nos referíamos naquela época às pessoas que ajudavam a organização”, lembra a socióloga Sonia Lafoz, que agora mora em Curitiba. Atiradora experiente, ela integrou o grupo responsável pela segurança externa do roubo. Durante os 30 minutos que durou a ação, Sonia permaneceu em frente à propriedade, dentro de um Aero Willys Itamaraty branco com teto de vinil preto. Além de um fuzil FAL 765, ela tinha algumas granadas ao alcance da mão. Depois, enquanto parte do comando guerrilheiro se dispersava, Sonia, a bordo do Aero Willys, integrou a escolta da Veraneio Chevrolet C-14 cinza que levou o cofre de Santa Teresa para um esconderijo no Largo do Tanque, em Jacarepaguá.

Ninguém precisou dar nenhum tiro nem saiu machucado da ação. O único incidente ocorreu na descida do cofre de 350 kg pela escadaria externa de granito que liga o primeiro andar à parte térrea da propriedade. Sabendo que o cofre estava camuflado em um armário do andar superior, os guerrilheiros prepararam pranchas de madeira com conexões de aço pelas quais o cofre deveria ser baixado. A velocidade da descida seria controlada por meio de cordas, em um sistema de roldanas. Na hora, o cofre despencou escada abaixo, estragando parte dos 20 degraus da escadaria.

Três décadas depois, Joana conferiu de perto o cenário do roubo, batizado pelos guerrilheiros como Ação Grande. Ela tinha 15 anos e viajou sozinha de Porto Alegre para o Rio de Janeiro. “Foi uma viagem de 28 horas, de ônibus. Eu não sabia o que esperar, mas sabia que seria importante, pois lá se encontrava um pedaço da minha vida”, diz. “Vi as marcas do cofre na escadaria e me lembro bem que pensei: ‘Que coragem teve o meu pai!’.” Joana também ficou impressionada com o imóvel: “É uma construção de deixar queixos caídos”. Durante cerca de dez dias, ela ficou hospedada em Santa Teresa com os tios e a prima Sylvia.

Sylvia agora também assina o sobrenome de casada, Cooper, e vive em Auckland, na Nova Zelândia. Ela conta que a mansão de 1,8 mil m2 de área construída, rodeada por 7 mil m2 de jardins, foi erguida em 1914 por seu tataravô. Trata-se do português Antonio Ribeiro Seabra , que imigrou muito jovem para o Brasil pré-industrial e fez fortuna na fabricação têxtil. “Ele não era sofisticado. Vinha de uma família muito simples, mas apadrinhou o Belmiro, que o ajudou a adquirir a mobília, esculturas e quadros”, diz Sylvia, referindo-se ao pintor, escultor e caricaturista brasileiro Belmiro de Almeida (1858-1935).

Suíças postiças

Em julho de 1969, quando trocou a vida na mansão pela luta armada, Gustavo, pai de Joana e tio de Sylvia, foi direto para Porto Alegre. Pouco tempo antes, a guerrilha havia deslocado para a capital gaúcha o jornalista mineiro Cláudio Galeno Linhares, o Galeno, à época casado com Dilma Rousseff. De Manágua, na Nicarágua, onde vive atualmente, Galeno conta que, na fase preparatória da ação, o sociólogo Juares o avisou que teria de “guardar” uma pessoa: “A situação do Gustavo era grave. Além da repressão política, havia uma máfia em torno do dinheiro de Adhemar de Barros. Assumi, assim, uma espécie de papel de irmão mais velho. Gustavo era um menino muito inteligente, brilhante mesmo, cheio de sonhos. Foi morar na mesma pensão que eu e o Pimentel (o ministro do Desenvolvimento Fernando Pimentel), na rua Alberto Bins. Era uma pensão de uma senhora italiana, um apartamento grande, com seis quartos. Moramos lá até outubro, novembro de 1969”.

No dia 1o de janeiro de 1970, Galeno integrou o comando guerrilheiro que sequestrou no ar um avião de passageiros, o Caravelle, da Cruzeiro do Sul, e o desviou para Cuba. Na época em que Galeno deixou o País, Gustavo vivia em uma casa clandestina da VAR-Palmares, em Porto Alegre. Nesse período, começou a namorar a bela Ignes Maria Serpa, uma estudante de Veterinária que pertencia à mesma organização e tinha sido namorada de Galeno. “Eu não sabia que o Galeno era casado”, trata de esclarecer Ignes, logo no começo de sua entrevista à Brasileiros. Nos tempos em que a vida corria por um fio devido à repressão política, as relações eram mesmo intensas e nem sempre sobreviviam às duras condições da clandestinidade. Àquela altura, Galeno já estava na prática separado de Dilma, com quem se casara no civil em Belo Horizonte, em setembro de 1967. Dilma, por sua vez, já havia conhecido no Rio de Janeiro seu futuro segundo marido, com quem ficou casada quase três décadas, o advogado Carlos Franklin da Paixão Araújo, pai de sua filha, Paula.

Junto com Ignes, Gustavo participou de vários treinamentos de guerrilha nas imediações da Lagoa dos Patos, a 20 km de Porto Alegre. Com as organizações de resistência ao regime esfaceladas pela repressão, o pai de Joana havia assumido aos 18 anos o comando de operações da VAR-Palmares no Rio Grande do Sul. Conhecido entre os companheiros de organização como disciplinado e responsável, tinha o apelido de Bicho. “Ele era magro e alto, com visual hiponga. Andava de sandálias franciscanas, jeans meio frouxos e usava os cabelos compridos. Lia muito e, nas reuniões, se destacava pelas análises de conjuntura.”

Gustavo cortou os cabelos no estilo militar e usou suíças postiças para colocar em prática os treinamentos feitos à beira da Lagoa dos Patos. Vestido como um sargento da Brigada Militar, ele participou de um assalto à agência do Banco do Brasil em Viamão, na Grande Porto Alegre, no dia 18 de março de 1970. “Ele levava um revólver 38 dentro do jornal que carregava dobrado. Eu tinha uma Beretta calibre 22 na bolsa. Como combinado, eu o abordei bem em frente à entrada do banco, pedindo uma informação. Quando nos viramos para o segurança da agência, o soldado bateu continência para o Gustavo. Mas logo viu as duas armas e se rendeu”, relata Ignes. Se a rendição deu certo, o mesmo não se pode dizer sobre o produto do assalto. Eram 12h30, o gerente tinha ido almoçar em casa e levado a chave do cofre. Os guerrilheiros saíram da agência apenas com o dinheiro que estava nos caixas.

Doze dias depois, Gustavo foi preso. Preocupado com a família do caseiro de um sítio na região rural de Porto Alegre, ele foi à propriedade para levar mantimentos e dinheiro. Afinal, o caseiro tinha sido preso pelo simples fato de trabalhar no sítio onde se escondia um integrante da VAR-Palmares. “É óbvio que, tão logo o Gustavo saiu do sítio, a mulher do caseiro avisou a polícia”, afirma Ignes. Ela foi presa na sequência: “Antes de começarem a me torturar, eles trouxeram o Gustavo. Ele estava todo arrebentado, desfigurado mesmo, cheio de hematomas. Mas olhou firme para mim e não moveu nenhum músculo, como se não me conhecesse.” Como de praxe na clandestinidade, Gustavo não tinha revelado sua verdadeira identidade para Ignes, nem falado sobre o roubo do cofre. No primeiro momento, o braço gaúcho da repressão também não conhecia a origem do guerrilheiro com sotaque carioca. Poucos dias depois, uma tentativa desastrada de sequestrar o cônsul americano em Porto Alegre culminou em uma sucessão de prisões. Todo mundo acabou identificado. Ignes conta que o sequestro do cônsul ainda estava em fase de planejamento ao ser desencadeado: “A ação foi antecipada justamente para resgatar o Gustavo”.

 

Reprodução/Arquivo pessoal

OS DONOS DO COFRE – Adhemar de Barros e a amante, Anna Capriglione, irmã do marido de um tia de Gustavo

 

Crime impossível

Com a identificação, Gustavo foi transferido para o Rio de Janeiro, onde chegou com dificuldades para respirar, devido ao nariz quebrado na tortura. Só mais tarde, no exílio, ele se submeteria a uma cirurgia plástica para corrigir o problema. A mudança de cárcere não aliviou a tortura, mas reaproximou Gustavo da família. Seus pais, Yedda e Sylvio, jamais criticaram o fato de ele ter ajudado a promover um assalto à própria casa. “Meu pai repetia sempre que o Gustavo tinha um ideal”, lembra o advogado Bernardo Buarque Schiller, um dos irmãos de Gustavo. Na época, Bernardo achou a atitude do irmão “inconcebível”, pois havia colocado em risco a família. Alguém poderia ter se ferido ou até mesmo morrido, se tivesse ocorrido um imprevisto. “Guerra é guerra”, argumentava o seu pai, que junto com a mulher Yedda, convocou o jurista Antonio Evaristo de Moraes Filho para defender o filho guerrilheiro. Foi esse conceituado jurista quem anexou aos autos do processo as cópias de prêmios escolares de Gustavo que a Brasileiros entregou à Joana. Ele também indicou como testemunha o médico que relatou a preocupação de seu paciente com a injustiça social.

No processo, Evaristo de Moraes adotou como linha de defesa a tese de “crime impossível”. Usou como base o fato de a antiga amante de Adhemar de Barros garantir em depoimento que o cofre estava vazio. Gustavo também jamais vira o dinheiro, só sabia dele por comentários da própria família. Um dos sargentos que desertou do Exército para aderir à guerrilha e atuou no roubo, desmente a versão de Anna. Ele ainda se lembra da alegria que sentiram ao abrir o cofre. “Eram maços e mais maços de dólares. Tinha até quatro cédulas raras, de US$ 1 mil, que eu nunca tinha visto antes, nem nunca mais voltei a ver”, afirma José de Araújo Nóbrega.

Condenado a dois anos de prisão, Gustavo acabou libertado e banido do Brasil antes de cumprir toda a pena. Em 13 de janeiro de 1971, ele decolou do Aeroporto do Galeão no Boeing 707 da Varig que levou para o Chile 70 presos políticos trocados pelo embaixador suíço no Brasil, Giovanni Bucher, que havia sido sequestrado pela guerrilha. “Uma vez eu fui apresentado ao Gustavo em Santiago do Chile, mas foi um encontro rápido”, conta Nóbrega. No período em que viveu em Santiago, Gustavo não se conformava com a ideia de que a guerrilha estava quase aniquilada e a ditadura, cada vez mais forte no Brasil. Nos anos seguintes, insistiu em voltar a atuar contra o regime militar.

A tentativa de resistência de Gustavo chegou à Joana por meio de uma figura singular. Em meados de agosto de 2011, ela foi convidada, junto com a mãe, para almoçar na casa de um antigo companheiro do pai, João Carlos Bona Garcia, o único ex-preso político brasileiro mais tarde nomeado juiz de um Tribunal de Justiça Militar. Bona Garcia organizara o almoço em sua ampla residência no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, para que Joana conhecesse o homem que foi um segundo pai para Gustavo no exílio. “Era o Gringo. Ele soube que eu existia e veio da Argentina me conhecer. Um senhor de idade, um camponês forte, com mãos calejadas. Um senhor que me abraçava como um avô abraça uma neta e não parava de chorar”, recorda Joana, emocionada. “Sempre que descubro ou me contam um pedaço da vida de meu pai é como se uma peça de um quebra-cabeça infinito se encaixasse. Nesse processo, o momento mais lindo foi quando conheci o Gringo e soube da relação dele com o meu pai.”

 

Reprodução/Arquivo pessoal

VOLTA AO BRASIL – A casa que Gustavo construiu na ilha do Marajó, no Pará, e o barco Utopia

O Gringo é o italiano Roberto De Fortini, que chegou ao Brasil aos 13 anos, em 1948. Começou a militância política quando trabalhava como operário. No final dos anos 1960, foi encarregado pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) de cuidar da logística da organização na fronteira do Brasil com a Argentina e o Uruguai. Como fachada, Gringo montou uma empresa de pesca à beira do rio Uruguai, em um lugar chamado Barra do Turvo, a 15 km da cidade de Esperança do Sul (RS). Ao mesmo tempo que a empresa e seus caminhões frigoríficos operavam normalmente, o proprietário tratava de providenciar documentos e armas para a organização de resistência ao regime militar. O plano da VPR de montar uma área de guerrilha na região desmoronou com a prisão da maioria de seus integrantes, inclusive o Gringo, mas ele não desistiu da ideia.

Banido do Brasil no mesmo voo que Gustavo, Gringo entrou com identidade falsa na Argentina já dominada pela linha dura militar e comprou terras em Aristóbulo del Valle, na província de Missiones. Seu plano ainda era montar a área de treinamento, experiência que Gustavo compartilhou no mais absoluto segredo por um longo período. Com a aniquilação da guerrilha no Brasil, Gustavo decidiu retomar os estudos, em Paris. Gringo continua a viver em Aristóbulo del Valle, ainda com identidade falsa. “O encontro da Joana com o Gringo foi muito tocante, quase como encontrar um avô perdido”, diz Bona Garcia. Joana, por sua vez, entendeu por que entre os documentos do pai havia uma carteira de identidade argentina, com sua fotografia, mas o nome Osorio Nuñes Montero: “Para a Argentina, o meu pai não morreu. O Gringo disse que, em todas as eleições, verifica e o nome do Osorio continua lá, na lista eleitoral.”

 

Manifesto Utópico

Na mesma caixa dos documentos falsificados, Joana guarda documentação autêntica de Gustavo como estudante da Universidade de Paris X-Nanterre, na capital francesa. Lá, estudou Sociologia e Economia. No mesmo período, casou-se com uma professora de piano, a francesa Nicolette Van Der Linden. Em 1980, depois da aprovação da Lei da Anistia, Gustavo fez uma longa viagem com Nicolette pelo Brasil. Ficou encantado com a ilha do Marajó, no Pará. Dois anos depois, a relação do casal estava chegando ao fim quando Gustavo conheceu Lúcia, a mãe de Joana. Gaúcha de Porto Alegre, Lúcia tinha chegado a Paris havia dez dias, para fazer um curso de francês. Não tinha nenhum envolvimento com política, mas logo se enturmou na comunidade brasileira. “Fui a uma festa em comemoração a um casamento gay. Era na casa de um francês, que estava se unindo a um brasileiro. Na festa, conheci Gustavo e não nos separamos mais”, conta Lúcia.

Com uma tese de doutorado em Economia para redigir, Gustavo decidiu voltar com Lúcia para o Brasil, em setembro de 1982. Nessa época, já preocupava os amigos pelo excessivo consumo de álcool. Como tinha investido a herança deixada por sua mãe, falecida em 1978, ele podia se dedicar à tese e a seus próprios projetos. Não tinha dúvida de que o melhor lugar do País era a ilha do Marajó. O jornalista Galeno, que o acolheu em Porto Alegre logo depois do roubo do cofre do Adhemar, conta que Gustavo sonhava em levar o desenvolvimento para a ilha: “Ele queria fazer de Marajó uma economia próspera, adequada às vocações locais”. Embora passasse horas a fio lendo e escrevendo a tese, Gustavo ficou muito próximo dos moradores da ilha. Comprou um barco, que batizou de Utopia, e começou a construir uma casa. “Ele fez cinco quartos, pois queria ter quatro filhos”, lembra Lúcia.

Quando Joana estava para nascer, o casal foi para Porto Alegre, para Lúcia dar a luz perto da sua família. Com o bebê, de volta à ilha do Marajó, as condições inóspitas da região começaram a pesar, ao mesmo tempo que acabava o  dinheiro da herança. Joana tinha 10 meses, em outubro de 1984, quando Gustavo deu o barco Utopia a um pescador ao qual se afeiçoara, vendeu a casa, e mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. Além de continuar escrevendo a tese, fazia uma pesquisa sobre o Estaleiro Mauá para um livro encomendado pela companhia, mas tinha poucas perspectivas pela frente. O hábito de beber, cultivado na França, havia se aguçado na ilha, onde tomava cachaça com os pescadores.

 

Reprodução/Arquivo pessoal

DOIS TEMPOS – Joana com os pais na ilha do Marajó, em 1984, e em Porto Alegre, com a mãe, Lúcia, dona dos Lhasa Apso Puppy e Vicky

 

Em 1885, no sábado dia 21 de setembro, Gustavo saiu com Lúcia e duas amigas. Joana ficou no apartamento dos pais de uma das amigas de Gustavo, Regina Xexéo, que no passado também integrara as fileiras da VAR-Palmares. Regina conta que tinha o costume de deixar a filha com os seus pais para sair à noite: “Naquele sábado, ficaram a Joana, a minha filha e os filhos do meu irmão”. O grupo circulou por bares e casas noturnas nas imediações da Lagoa Rodrigo de Freitas. Gustavo bebeu muito, mas Regina só estranhou o comportamento do amigo quando, no começo da madrugada, ele perguntou se ela já tinha perdoado os seus torturadores: “Respondi que nunca iria perdoar, que queria saber quem foi e queria punição. Achei um mau sinal quando o Gustavo disse que já tinha perdoado os seus torturadores”.

No retorno à Avenida Nossa Senhora de Copacabana, onde estavam as crianças, Gustavo mal esperou a outra amiga, Rosa, estacionar. Desceu rapidamente do carro. Regina conseguiu alcançá-lo no elevador. Já no apartamento, ele foi direto para o quarto onde dormiam Joana, então com um ano e oito meses, e as outras crianças. “Quando entrei no quarto, só vi a cortina balançando. Ele já tinha pulado”, recorda Regina. Era madrugada do domingo que Gustavo combinara com Galeno para ambos levarem à praia, no Leme. “Passei muito tempo remoendo a culpa de não ter me dedicado mais ao Gustavo naquele período”, confidencia Galeno, à época responsável pela comunicação da Secretaria do Planejamento do Rio de Janeiro, no primeiro governo Leonel Brizola.

Quem não conviveu com Gustavo nos seus últimos anos de vida tem dificuldade em aceitar a forma como ele morreu. Gringo é uma dessas pessoas. “Ele tinha convicção de que haviam matado o Gustavo. Por isso, localizei a mulher que viveu com o Bicho até o final”, diz Bona Garcia, o anfitrião do almoço em que Joana conheceu o Gringo. No quebra-cabeça sobre a história de seu pai, ela agora quer encontrar o Manifesto Utópico, como ele intitulara a tese de doutorado. “Tinha 400 páginas, fomos emprestando para um, para outro, e acabamos perdendo. Ele escrevia à mão, com uma letra bem miúda. Não consegui passar da página 60, mas tentei ler aos 16 anos. Não tinha nem paciência nem maturidade”, conta Joana, que trabalha na gerência de uma rede de academias em Porto Alegre. “Tenho um orgulho gigante de ser filha de quem sou, mas uma imensa tristeza de saber que fui proibida de conviver com esse cara que todos admiram e sentem falta por causa dos caminhos que a política seguiu.” Ela conta ainda que também se orgulha muito da mãe, que trabalha como taquígrafa, e teve de batalhar para muito criá-la, ainda que com o apoio de seus avós maternos. Não por acaso, misturando os termos pai e mãe, Joana costuma chamar Lúcia de “pãe”.

 

Fonte – Revista Brasileiros

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