Concessão de cemitérios em SP inclui criação de memoriais para vítimas da ditadura

Publicado originalmente em 31.ago.2019 às 8h00

 

 

Homenagens serão feitas assim que os espaços forem concedidos à iniciativa privada

No início de 2018, a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) recebeu laudo identificando, depois de quase 30 anos, uma ossada encontrada em 1990 em vala clandestina no cemitério de Perus, em São Paulo.

Os restos mortais do bancário Dimas Antônio Casemiro, que teria sido preso, torturado e morto por agentes da ditadura militar em São Paulo em 1971, foram encontrados junto a outras 1.046 ossadas -muitas delas pertencentes a vítimas da violência do regime.

Dimas e os demais terão suas trajetórias contempladas por memoriais de mortos políticos que deverão ser construídos nos cemitérios da cidade assim que esses espaços forem concedidos à iniciativa privada, o que provavelmente acontecerá em 2020.

A administração municipal publicará nos próximos meses o edital correspondente. Na quarta-feira (28), a Câmara Municipal aprovou definitivamente a concessão dos 22 cemitérios, do crematório e do serviço funerário para um gestor privado. O projeto agora aguarda sanção do prefeito Bruno Covas, do PSDB.

Foi incorporada ao texto uma emenda de autoria do vereador Antonio Donato, do PT, que determina que o contrato de concessão inclua a construção de memoriais de vítimas do regime militar. O texto da emenda diz que deverão ser garantidos: a preservação das ossadas de mortos políticos, infraestrutura para a realização de estudos científicos de recuperação de história e da memória, e espaços de visitação.

Sobre o cemitério de Perus, a emenda diz que o contrato de concessão deverá destinar espaço e apoio para que os estudos de identificação de ossadas não sejam interrompidos. O grupo de trabalho de Perus, coordenado pela CEMDP, trabalha na identificação das ossadas encontradas em 1990 no cemitério da zona norte. Pouco depois da descoberta, duas ossadas foram identificadas. Em 2005, o mesmo ocorreu com uma terceira.

Em 2014, elas foram levadas à Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que encaminhou o material para o Centro de Antropologia Forense da instituição, onde o grupo de trabalho começou a fazer as análises laboratoriais. “A concessão colocava em risco as memórias dos que foram enterrados em valas comuns na ditadura. Os memoriais serão espaços de reflexão sobre nossa história recente, a ditadura militar e o valor da democracia”, afirma Donato.

O texto agora segue para a sanção do Executivo. Neto do governador Mário Covas (1930-2001), que teve os direitos políticos cassados pela ditadura, o prefeito vê a intenção com bons olhos. O projeto surge na contramão de posições que têm sido defendidas por Jair Bolsonaro.

No começo do mês, o presidente trocou quatro dos sete membros da CEMDP e colocou militares e membros do PSL no lugar de figuras de referência na discussão da memória do período, como Eugênia Gonzaga, procuradora regional da República, e Rosa da Cunha, advogada.

A decisão aconteceu pouco depois de Bolsonaro atacar o presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, e dizer que poderia explicar a ele como seu pai, Fernando Santa Cruz, morreu na ditadura.

Fernando, que havia atuado na organização de esquerda Ação Popular Marxista-Leninista, desapareceu em 1974 após ser preso por agentes do DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura, no Rio de Janeiro. A versão de Bolsonaro, segundo a qual Fernando teria sido executado por companheiros da esquerda, contraria documentos produzidos pela própria ditadura.

A CEMDP emitiu documento afirmando que Fernando morreu “em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”. “O presidente expressa algo que existe em outros países da Europa, como no caso da Alemanha e o Holocausto, que é o negacionismo. Ele quer negar que houve a ditadura tal como aconteceu e assim promover uma revisão da história”, diz o advogado Pedro Dallari, que foi coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Segundo ele, “por isso é importante que essa memória do que houve seja preservada nos cemitérios. A sociedade avança com o aprendizado extraído da sua história.”

O relatório final da CNV, divulgado em 2014, concluiu que 434 pessoas foram mortas ou desapareceram vítimas de violência do Estado no período que vai de 1946 a 1988. A comissão estadual divulgou relatório em 2015 que conta 168 vítimas, mortas ou desaparecidas, no estado de São Paulo durante a ditadura.

Com um valor de custeio de R$ 51 milhões e receita de R$ 43 milhões, o serviço funerário da capital acumula problemas de manutenção e falta de segurança. É grande o número de reclamações de violação de lápides, mato alto e sujeira nos cemitérios.

A prefeitura prevê receber R$ 991 milhões com a concessão dos cemitérios e do serviço. O projeto de lei propõe a divisão de enterros em categorias como social, popular, padrão e luxo, separadas de acordo com valores pagos pelos serviços, o que foi objeto de críticas de vereadores.

FONTE – FOLHAPRESS