“A História do Brasil não é conhecida” lamenta autora de livro sobre Frei Tito, “mártir da ditadura”

A escritora e jornalista Leneide Duarte-Plon acaba de lançar a versão francesa de “Um homem torturado, nos passos de Frei Tito de Alencar”, em coautoria de Clarisse Meireles. O livro resgata a trajetória do frei dominicano, torturado nos porões da ditadura e que se suicidou em 1974 na França. Um documento minucioso sobre a luta armada contra o golpe militar no Brasil.

O ponto de partida dessa biografia de Tito de Alencar é mostrar como a tortura pode destruir um homem para sempre. “Tito morreu de fato na sala de tortura” diz Leneide em entrevista à RFI.

A ideia de contar a trajetória do frei dominicano surgiu quando a jornalista brasileira, residente em Paris, foi assistir uma palestra onde o psiquiatra Jean-Claude Rolland relatou sua primeira experiência, nos anos 70, de tratamento de uma das vítimas da tortura da ditadura militar no Brasil. Ele se referia ao Frei Tito de Alencar, que nessa época vivia em um convento na França, onde sofria delírios e alucinações.

“Nesse dia o livro começa” conta Leneide, que iniciou uma série de entrevistas no Brasil e na França, com sua filha Clarisse Meirelles, também jornalista. Em 2014 o livro foi publicado pela editora Civilização Brasileira e indicado ao prêmio Jabuti um ano mais tarde. Recentemente, a obra foi traduzida para o francês e lançada pela editora Karthala com o título “Tito de Alencar (1945-1974) – Un dominicain brésilien martyr de la dictature (“Tito de Alencar, um dominicano mártir da ditadura brasileira”).

Marcas invisíveis

Em 1968, o cearense Tito, aos 23 anos, se engajou, como muitos religiosos da ordem dos dominicanos, nas ações de apoio logístico à Ação de Libertação Nacional, liderada por Carlos Marighella. Detido um ano depois, o Frei foi violentamente torturado, primeiro pelo delegado Sérgio Fleury, de São Paulo, e depois por outros agentes do DEOPS, a polícia política do regime militar brasileiro.

Junto com outros 69 prisioneiros políticos, Frei Tito foi trocado pelo embaixador suíço no Brasil, Giovanni Bucher, sequestrado em dezembro de 1970 pela guerrilha armada VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Libertado, mas banido do Brasil, em 1971, ele se exilou no Chile e depois na França. Mas a tortura o afetou de tal maneira que ele nunca mais conseguiu se reconstruir psicologicamente.

“Os torturadores vieram dentro dele para a França. Ele passou a sofrer alucinações, não conseguia mais dormir e revivia a tortura que sofreu dia e noite no Brasil. Realmente a tortura pode destruir uma pessoa. Foi o caso dele”, observa Leneide, lembrando que um de seus torturadores o havia prevenido durante os interrogatórios: “Podemos destruir você sem deixar marcas visíveis”.

A jornalista ressalta que Tito “começou a morrer de fato nas mãos do Delegado Fleury”. Em seus delírios de perseguição, ele o via ameaçando sua mãe, sua irmã e os membros de sua família. Acolhido no belo convento Sainte-Marie de La Tourette, perto de Lyon, construído por Le Corbusier, o Frei acabou internado em um hospital psiquiátrico, mas não conseguiu superar o tormento. Tito preferiu a morte ao “convívio” com seus torturadores.

Cristão e revolucionário

Para escrever esse livro, Leneide fez uma pesquisa exaustiva e entrevistou dezenas de pessoas que participaram das organizações armadas contra a ditadura. Muitas delas, como o Frei Betto, conheceram o jovem dominicano.

Segundo Leneide, Tito vivia contradições, mas achava impossível “ser cristão sem ser revolucionário”. Ela cita um de seus textos em que ele resume a concepção dominicana do evangelho: “Nós não existimos para salvar as almas, mas para salvar as criaturas, os seres humanos vivos, concretos, no tempo e no espaço bem definido. Temos uma compreensão histórica profunda de Jesus”.

“O evangelho que os dominicanos pregavam é o evangelho que liberta o homem aqui na terra, na vida real, que batalha pela justiça social”, afirma ela, se referindo ao engajamento de uma parte da Igreja Católica contra a ditadura militar e contra a violação dos direitos humanos no Brasil.

Por meio dos testemunhos que ouviu, a jornalista concluiu que as dúvidas que o Frei tinha não eram ligadas às contradições entre marxismo e cristianismo. “Ele se questionava sobre a revolução brasileira, sobre a imaturidade da revolução e sobre a impossibilidade de ela ser bem-sucedida pelo fato de não ter o povo apoiando em massa”.

Para Tito, lembra Leneide, “o difícil era acreditar que eles teriam algum sucesso e chegariam ao objetivo. Fracos como eles eram, face a uma ditadura terrível e ao terrorismo de Estado, que acabou aniquilando completamente a resistência armada”.

Marighella, o “Che brasileiro”

Um dos capítulos do livro é dedicado a Carlos Marighella, chefe da Ação de Libertação Nacional (ALN), cujo codinome na clandestinidade era Ernesto, homenagem evidente a Ernesto Che Guevara, líder da revolução cubana.

O baiano Marighella é descrito pelos membros de várias organizações armadas, entrevistados por Leneide e Clarisse, como o grande líder revolucionário brasileiro. Ele já preconizava a revolução e a luta armada nos anos 30, quando foi preso e torturado pela polícia do ex-presidente Getúlio Vargas.

Segundo relatos dos entrevistados, Marighella pensava desde 1968 em uma união das forças revolucionárias brasileiras, que não deveria se limitar ao Brasil, mas sim fazer parte de um plano global contra o imperialismo que dominava a América Latina. O líder da ALN foi morto pela policia em novembro de 1969 em uma emboscada, no mesmo dia da detenção de Frei Tito e de outros dominicanos.

“Marighella era uma espécie de Che Guevara brasileiro. E teve um fim trágico, como todos os líderes revolucionários que sonham grande”, observa Leneide, lembrando que ele foi executado e que não estava armado quando caiu na emboscada da polícia.

Narrativa da ditadura está de volta

Apesar da importância de Marighella no cenário da resistência armada contra o golpe militar de 1964, seu nome é praticamente desconhecido dos jovens no Brasil, embora, segundo a jornalista, ele seja “um grande herói da história brasileira”.

“É importante dizer que Marighella não é muito conhecido das novas gerações como a História da ditadura também não é conhecida. Houve um ocultamento desejado e trabalhado para que essa História ficasse debaixo do tapete”, lamenta a jornalista, ressaltando que o Brasil não fez um trabalho de memória até hoje.

“E não é de espantar que a narrativa da ditadura volte em todo o seu esplendor. É algo que interessa à extrema direita que está no poder no Brasil. E o trabalho do livro é o resgate da memória”. Segundo ela, é importante contar a história da ditadura e do terrorismo de Estado implantado nessa época.

Leneide Duarte-Plon espera que as novas gerações possam se informar sobre o que foi a ditadura militar para “impedir que os nostálgicos dos torturadores e da tortura imponham o discurso deles”.

Fonte – UOL