Democracia e Direitos Fundamentais

 11 de janeiro de 2022

Reportagem do UOL escancara o desvirtuamento da Comissão de Anistia

“É a mais cabal comprovação que quem venceu foi o revanchismo da extrema-direita”, diz Tarso Genro

O apreço de Bolsonaro pela Ditadura não é nenhuma novidade. Antes mesmo de homenagear Brilhante Ustra no seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff, o atual presidente já colecionava declarações criminosas enaltecendo a tortura e o assassinato de militantes políticos pelo Estado. Quem esquece da frase “0 erro da ditadura foi torturar e não matar”, proferida pelo genocida na sua rádio favorita, a Jovem Pan, em 2016?

Apesar disso, Bolsonaro não conseguiu reunir forças para o autogolpe que articulou em 2021. Porém, há ações de governo que materializam sua devoção ao que ocorreu no Brasil entre 1964 e 1985. O caso mais evidente foi publicado recentemente pelo portal UOL, que revelou que a Comissão de Anistia, criada em 2001 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, tem indeferido a imensa maioria de ações que reivindicam reparações em função das consequências sofridas por pessoas presas e perseguidas durante o Regime Militar.

Antes de entrar nos números, vale analisar a composição da Comissão de Anistia. O atual presidente é o advogado e ex-assessor parlamentar do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) João Henrique Nascimento de Freitas, autor de ações judiciais para suspender anistias concedidas a familiares de Carlos Lamarca e a camponeses da Guerrilha do Araguaia. Além disso, há quatro militares entre os 14 integrantes. Um deles é o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, autor do prefácio do livro “A verdade sufocada”, escrito pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi e primeiro militar reconhecido pela Justiça como torturador, em 2008. Os outros militares na Comissão são Dionei Tonet, coronel e comandante-geral da PM de Santa Catarina, Tarcisio Gabriel Dalcin, coronel da FAB (Força Aérea Brasileira), e Vital Lima Santos, coronel do Exército.

O órgão, antes ligado ao Ministério da Justiça, atualmente está vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandada por Damares Alves, considerada uma das mais fiéis escudeiras de Bolsonaro.

Agora, vamos aos dados publicados pelo UOL. Conforme o advogado Humberto Falren, especialista em casos de anistia, 79% dos pedidos foram indeferidos no atual governo. Outros 18% foram anulados, ou seja, nem chegaram a ser julgados. Apenas 3% dos pedidos foram deferidos. Na reportagem, é possível conhecer alguns casos absurdos de pessoas que comprovadamente sofreram danos materiais e psicológicos e mesmo assim tiveram seus pedidos indeferidos (o link está publicado no final deste texto).

Durante os governos de Lula e Dilma Rousseff, os indeferimentos ficavam em torno de 50%, afirma Eneá de Stutz e Almeida, professora de Direito da UnB (Universidade de Brasília) e conselheira da Comissão de Anistia de 2009 a 2018.

Nomeado ministro da Justiça em março de 2007, Tarso Genro deu maior relevância ao órgão. Além da compensação econômica, o governo propunha atos de reparação simbólica e projetos educativos. Também provia atendimento psíquico gratuito a vítimas e familiares.

“O tratamento dado à Comissão da Anistia depois do golpe contra Dilma é a mais cabal comprovação que quem venceu, ao final, foi o “revanchismo” da extrema-direita contra a Democracia e a República. Ela se tornou um espaço de celebração da barbárie e do cancelamento da transição”, afirma Tarso.

Na sua gestão, Tarso nomeou o professor Paulo Abrão como presidente da Comissão de Anistia. Após seu trabalho no órgão, Abrão foi Secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entre agosto de 2016 a agosto de 2020.

Mesmo com o desvirtuamento dos trabalhos da Comissão de Anistia no Governo Bolsonaro, os resultados atuais deram sequência ao que já acontecia desde 2016, quando Michel Temer assumiu a presidência. Na época, o órgão passou a sofrer interferências mais sérias, analisa José Carlos Moreira da Silva Filho, professor de Direito da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), ex-vice-presidente e ex-conselheiro da Comissão da Anistia.

“No segundo dia do governo Temer, o então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes [hoje ministro do Supremo Tribunal Federal], fez algo que nunca tinha acontecido antes na Comissão: exonerou um conjunto de conselheiros sem dar nenhuma justificativa”, afirma José Carlos, que foi um dos sete conselheiros exonerados.

Foram nomeadas 19 novas pessoas para compor o conselho da Comissão, segundo José Carlos, sem tradição na defesa dos direitos humanos e nas pautas relacionadas à justiça de transição. Até então, havia um debate entre os conselheiros sobre quem era mais adequado indicar e o ministério geralmente acolhia as sugestões do Conselho. “A partir do governo Temer nada mais era conversado, então nem sabemos se havia algum critério nas indicações ou não”, conta Stutz de Almeida.

O aumento no volume de indeferimentos ocorreu a partir da entrada de Torquato Jardim no Ministério da Justiça, em 2017. De setembro daquele ano ao fim de 2018, 1.862 pedidos foram indeferidos de um total de 1.899, segundo levantamento feito por Humberto Falren. Nomeado presidente da Comissão de Anistia em maio de 2017, o advogado Arlindo Fernandes de Oliveira pediu demissão do cargo em setembro daquele ano. Ele discordava da criação de um órgão de revisão, pelo Ministério da Justiça, que na prática passou a reverter reparações já aprovadas pelos conselheiros. Em comunicado aos integrantes da Comissão, também criticou o fim do apoio do governo ao programa de atendimento psíquico a vítimas da ditadura.

No total, a Comissão de Anistia concedeu status de anistiado político a cerca de 39 mil pessoas, segundo informações do próprio órgão, que não especificou em quantos desses casos houve também reparação econômica.

Texto de Guilherme Gomes, a partir de dados publicados nesta reportagem do portal UOL: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2022/01/11/comissao-de-anistia-sob-bolsonaro-nega-79-dos-pedidos-de-reparacao.htm

Foto: Arquivo MJ – Reunião da Comissão de Anistia em Belo Horizonte em 2014.