Historiadora da Federal do Ceará analisa como o regime militar usava seu poder para controlar as visões do passado exibidas em filmes
O passado é alvo de disputas em qualquer sociedade, mas elas se tornam mais agudas em regimes de exceção, que lançam mão de instrumentos autoritários para controlá-lo e, assim, ditar o encaminhamento dos conflitos do presente. Esse fenômeno é observado pela historiadora Meize Lucas, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), na análise que faz sobre o trabalho de censura ao cinema executado pela Divisão de Censura às Diversões Públicas (DCDP) durante o regime militar.
Meize, que faz residência pós-doutoral na UFMG, apresentará detalhes da sua pesquisa na palestra A história negociada: censura e cinema no Brasil (1964-1985), promovida pelo Laboratório de História do Tempo Presente, da Fafich. A atividade será realizada nesta segunda-feira, dia 3, a partir das 17h, no auditório Baesse (quarto andar da Fafich), no campus Pampulha.
Em seus estudos, a historiadora analisa a ação dos censores sobre filmes que relatavam acontecimentos ou experiências históricas distantes ou recentes, com o intuito de compreender as disputas em torno dos usos políticos do passado. Ela examinou documentos produzidos pela DCDP, hoje sob a guarda Arquivo Nacional, materiais recebidos pela Divisão provenientes de outras instâncias do governo, como os ministérios da Justiça e das Relações Exteriores, e os pareceres dos filmes. “Todo filme exibido ou produzido no Brasil passava obrigatoriamente pela divisão de censura”, lembra Meize.
A professora dedicou-se, por exemplo, aos pareceres que a censura emitiu sobre os filmes Sacco e Vanzetti, dirigido por Guiuliano Montaldo, de 1971, e Desaparecido, de 1982, de Constantin Costa-Gravas. O primeiro relata o julgamento manipulado de dois anarquistas italianos nos Estados Unidos, na década de 1920. Já o filme do grego Costa-Gravas é inspirado no golpe de Estado conduzido no Chile pelo general Augusto Pinochet, em 1973. No Brasil, sua exibição foi liberada para maiores de 16 anos. Em seu parecer, o censor Arésio Teixeira Peixoto registrou que o filme exibia “cenas de violência e tensão”, cuja compreensão exigia “certa maturidade”.
Forças desiguais
“Embora a disputa pelo passado em suas representações ocorra em qualquer sociedade, há, nos regimes de exceção, uma correlação desigual de forças, na qual a censura exercida pelo Estado ocupa papel central na prescrição de condutas e normas sociais e na construção da figura do inimigo, seja ele interno ou externo”, afirma pesquisadora.
Meize Lucas conta que os braços da censura transcendiam a DCDP, alcançando outros atores com poder e influência, como funcionários do Sistema Nacional de Informações (SNI), dos ministérios das Relações Exteriores e da Justiça, da Embrafilme e do judiciário. Ainda nesse “ecossistema” controlado pela censura, figuravam produtores, diretores, distribuidores e exibidores empenhados em reduzir o alcance da “tesoura” sobre as suas produções. “Mesmo reconhecendo que a relação de forças era desigual, podemos identificar uma ação negociada desses personagens que buscavam ampliar o número de filmes liberados para faixas etárias menores”, explica a historiadora.
A pesquisadora
Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Ceará (UFC), Meize Lucas é doutora em História pela UFRJ, com residência pós-doutoral nas universidades de Brasília e de Groningen (Holanda). Ela é autora dos livros Caravana Farkas: itinerários do documentário brasileiro, Imagens do moderno: o olhar de Jacques Tati, Por uma escrita da história do cinema, além de Dizer é poder – escritos sobre censura e comportamento no Brasil autoritário (1964-1985), este em parceria com Ana Rita Fonteles e Jailson Pereira da Silva.
FONTE – ufmg.br