A ditadura acabada, história do governo João Figueiredo, o último do regime militar, é um rico retrato de como as personalidades influenciam os ciclos da política – reflexão, de novo, atual nos tempos de Dilma
Em uma das gravações feitas pelo ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado, que estão abalando o governo Michel Temer, o ex-presidente José Sarney revelou uma confissão que lhe fora feita pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula Silva. “Ele (Lula) me disse que o único arrependimento que ele tem é ter eleito a Dilma”, afirmou Sarney. “O único erro que ele cometeu. Foi o mais grave de todos.” No livro A ditadura acabada (Intrínseca, 448 páginas, R$ 59,90), o quinto (e último) volume da monumental história da ditadura que, sob o comando de militares, governou o Brasil entre 1964 e 1985, o jornalista Elio Gaspari conta como Ernesto Geisel, o penúltimo general-presidente, passou a nutrir sentimento semelhante em relação a João Baptista Figueiredo, o general grosseirão que lhe sucedera na Presidência da República entre 1979 e 1985.
Não é a única coincidência que, a partir da leitura de A ditadura acabada, emerge das histórias do presidente do último ciclo autoritário da história brasileira e da presidente que pode encerrar um ciclo de mais de 13 anos do Partido dos Trabalhadores à frente do governo federal – ressalvadas as óbvias diferenças de queFigueiredo comandou o país com poderes discricionários e Dilma Rousseff governou com as restrições de um regime democrático. Assim como Dilma foi inventada como candidata presidencial no apogeu da popularidade de Lula, Figueiredo foi praticamente imposto como presidente por um Geisel supervitorioso. “Geisel venceu todas” é o título da primeira parte do livro, cuja narrativa se inicia no dia seguinte à demissão, em 12 de outubro de 1977, do ministro do Exército, o general Sylvio Frota, representante da linha dura das Forças Armadas que pretendia ocupar a cadeira de Geisel no Palácio do Planalto.
“Geisel foi para os últimos meses do seu mandato com uma inédita coleção de êxitos políticos. Como Médici, escolhera o sucessor. Impusera um general (Figueiredo) a quem inicialmente faltava a quarta estrela. Superara a hostilidade do ministro do Exército e o surgimento de um adversário militar. Prevalecera numa eleição realizada num ano (1978) que, com o movimento sindical ressurreto, tivera as maiores greves operárias desde 1964”, escreve Gaspari. Figueiredo fora ungido como presidente porque ele conhecia como ninguém o regime militar por dentro. Chefiara o Gabinete Militar da Presidência durante o governo Médici e o poderoso Serviço Nacional de Informações (SNI) na gestão Geisel. Geisel, o “sacerdote” do regime militar, e seu lugar-tenente, o general Golbery do Couto e Silva, o “feiticeiro”, que haviam sido chefes de Figueiredo, imaginaram que ele seria o nome perfeito para comandar a transição “lenta, gradual e segura” para um regime sob o comando de um presidente civil – que, nos planos deles, só ocorreria em 1990.
Como a “mãe do PAC”, Figueiredo, antes de assumir o poder, também passou por uma roupagem publicitária para polir sua imagem pública e aproximá-lo do povão. O general durão virara “João”, um homem de hábitos simples e atléticos, que montava cavalos para saltos e se exibia, de sunga, fazendo exercícios com pesos. Na verdade, Figueiredo era um sexagenário cardiopata, cuja coluna vertebral fora arruinada pela montaria. Assim como um infarto, em 1981, revelou a fragilidade da saúde de Figueiredo, suas limitações para o exercício do poder foram aparecendo uma a uma à medida que as crises batiam às portas do Palácio do Planalto e desfaziam o grupo de assessores e ministros legados por Geisel para Figueiredo (outra semelhança, já que Lula também deixou para Dilma uma plêiade de assessores, como Antonio Palocci, na Casa Civil, e Gilberto Carvalho, na Secretaria-Geral da Presidência, que também foram se s demitindo ou sendo colocados de escanteio no governo de Dilma).
A primeira crise foi a da economia. O então ministro do Planejamento, Mário Henrique Simonsen, imaginava que seria um superministro, mas teve de conviver num governo eclético e descoordenado com a sombra de Delfim Netto na Pasta da Agricultura. Simonsen, assim como Joaquim Levy, o breve ministro do segundo mandato de Dilma, defendia que o governo apertasse as contas públicas para conter a inflação, ainda que a preço de recessão. Para não ser o ministro que “vai apresentar a inflação de 50% ao presidente”, pediu demissão, depois de travar o seguinte diálogo: “Mário, você acha que o meu governo está uma m…, não?”, perguntou Figueiredo. “Presidente, eu estou indo embora…”
Golbery saiu da Casa Civil depois que Figueiredo medrou e patrocinou uma “operação abafa” para ocultar, nas investigações de um atabalhoado ataque a bomba durante um show no Riocentro, no Rio de Janeiro, em 1981, a participação no atentado terrorista da “tigrada” – os militares dos serviços de repressão descontentes com a abertura democrática. O general durão era só uma bazófia. A partir do caso Riocentro, o governo Figueiredo foi se desmilinguindo até terminar num desastre. Deixou a maior inflação até então registrada na história nacional (224%) e a maior dívida externa do mundo (US$ 100,2 bilhões). Ao final de seu governo, a renda per capita dos brasileiros caíra de US$ 2 mil para US$ 1.680.
A ditadura acabada não estava nos planos iniciais de Gaspari .Ele pretendia terminar seu ciclo com A ditadura encurralada, que se encerra com o penúltimo ano de Geisel no Palácio do Planalto, 1978. Ele se animou a escrever o livro com o relato do último ano de Geisel e a continuação do governo Figueiredo depois de ver como o jornalista americano Robert Caro conseguiu produzir um livro de 752 páginas sobre os primeiros meses do governo de Lyndon Johnsonnos Estados Unidos. Escrito com o mesmo estilo minucioso, porém leve e ágil, dos primeiros volumes, o livro acaba por se transformar num rico retrato de como as personalidades individuais (pela liderança ou falta delas) acabam por ditar o rumo dos ciclos históricos, retardando ou acelerando seus desfechos.
Assim como Dilma, Figueiredo era de maus bofes. Quando recebeu um telegrama dos docentes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que protestavam contra a expulsão de um professor, limitou-se a mandá-los à “m…”. Seu temperamento, mostra Gaspari, contribuiu para a ruína de seu governo. A cena final de seu governo foi patética. Ressentido com Aureliano Chaves, seu vice, e com José Sarney, presidente do PDS, que se aliaram à oposição, recusou-se a transmitir a faixa presidencial tanto a um como a outro e deixou o Palácio do Planalto, por uma porta lateral, pedindo que o esquecessem. Com esse gesto de “cavalariano estourado”, conseguiu embaçar até o que seu governo fizera de bom: a anistia política de 1979, as primeiras eleições diretas para governadores de Estados em 1982 e a passagem do poder para um civil.