Relatos colhidos revelam dor de filhos de presos políticos

Efeitos da repressão durante a Ditadura Militar são sentidos ainda hoje por crianças daquela época

Mortes, desaparecimentos, torturas e prisões políticas são algumas das marcas do regime militar, instaurado em 1964 no Brasil. Mas o período também resultou em uma geração de meninos e meninas que tiveram parte de suas histórias roubada. Usadas muitas vezes como instrumento de chantagem, várias crianças não tiveram o direito de desfrutar da convivência familiar, de frequentar o ambiente escolar ou de se relacionar com a comunidade. Pelo contrário, foram obrigadas a viver diariamente com segredos e com o receio de que novos episódios de violência, contra elas ou seus pais, ocorressem novamente.

O quinto e último volume do relatório final da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg), divulgado na última semana, traz histórias de 21 famílias que tiveram os destinos marcados pela violência do período. Um dos relatos é de Chirlene Gonçalves. O pai dela, Benedito, atuava como sindicalista e trabalhou durante 11 anos como metalúrgico na Companhia Siderúrgica Pains, em Divinópolis, no Centro-Oeste de Minas.

A vida mudou drasticamente em 13 de agosto de 1979. Durante uma manifestação de grevistas no município, ele foi agredido pela Polícia Militar (PM) e, sete dias depois, morreu – no mesmo dia em que completaria 48 anos de idade. “Se falar que tem greve lá no centro, eu corro léguas. Por quê? Trauma que a gente fica. O jeito que ele morreu, como que ele foi tratado, que eu acho que não precisava daquilo. Machucou, levou para o hospital, chegou lá, não fizeram os exames que ele tinha que fazer”, relata Chirlene, que tinha 10 anos na época. Se o pai dela ainda estivesse vivo, teria hoje dez netos e seis bisnetos.

Outra memória presente no relatório da comissão é a de Glaucy, que encontrou o pai e a mãe mortos quando ainda era criança. O jornalista Flávio Ferreira da Silva era prefeito de Barreiro Grande, atual Três Marias, quando houve o golpe militar. Por ter participado de um evento com o presidente João Goulart, foi considerado subversivo. Ele foi cassado, preso e torturado na base aérea de Lagoa Santa. Tempos depois, foi inocentado pelos próprios militares. Contudo, a família diz que ele nunca mais foi o mesmo. Flávio passou a ter problemas psicológicos e, em 1975, em Belo Horizonte, matou a mulher e suicidou em seguida. Além de lidarem com adversidades no âmbito familiar, Glaucy e os dois irmãos cresceram sendo hostilizados pelos demais moradores de sua cidade natal, Várzea da Palma. “Durante muitos anos eu falava assim: “Para quê que eu vou viver?” Porque quem eu mais gostava não tem mais (sic). Aí eu preferia que tivesse acabado a família inteira ali. Aos 12 anos, eu tive muita crise também de não querer viver. Aos 16 também. Eu só fui ter força quando eu fui mãe”, narra.

Gravidez. Também são comuns os casos de mulheres torturadas durante a ditadura enquanto estavam grávidas. Administrador de empresas e matemático, João Carlos Schmidt de Almeida Grabois, mais conhecido como Joca, nasceu na prisão, em Brasília. A mãe dele, Crimeia, conta que ouvia ameaças de violência contra o filho e que sentia o feto tendo crises de soluço na barriga sempre que era torturada pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.

O trabalho de parto de Crimeia durou 27 horas, sendo a maior parte na cadeia, sem assistência médica. Joca ficou com a mãe por apenas um mês na prisão e foi entregue a sua família. Eles se reencontraram um tempo depois. Desnutrido, com infecção e sendo sedado constantemente, o menino teve sequelas e fez muitos tratamentos, incluindo o neurológico até os 10 anos. O rapaz também nunca conheceu o pai, André, morto no Araguaia em 1973.

Balanço. O relatório final da comissão identificou 1.531 presos políticos presos no Estado, revela o nome de 125 torturadores que atuaram em Minas e cita 98 locais de tortura em território mineiro.

Violência sexual era usada pelo regime

O relatório final da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg) mostra que no período da ditadura militar, durante os interrogatórios com mulheres, era comum o assédio físico e a violência sexual. Ainda segundo o documento, os militares utilizavam a maternidade ao tratarem as mulheres.

“Além da privação do convívio com os filhos, em vários casos esses eram mantidos em frente às suas mães durante as sessões de tortura, enquanto os oficiais ameaçavam torturá-los caso as prisioneiras não falassem o que eles queriam”, diz trecho do relatório.

A violência, segundo a Covemg, também perseguia mulheres que faziam parte do convívio familiar de presos políticos. Caso de Luzia Nereu, 51, filha de um operário. Ela conta que quando tinha 13 anos, um sargento identificado como Alaor fazia ameaças caso ela não fizesse o que ele mandasse.

“Em resumo, ele me molestava, era nojento. Eu era uma criança, e não entendia nada. Aquele nojento estragou minha adolescência. E ele falava que se eu não obedecesse ao maior absurdo, o meu pai sofreria. Até matar eles o fariam. Com a minha mãe ele fazia o mesmo”, relata.

Ameaças e fome em hospital

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Rodrigo Penna. Cinco dias após seu nascimento, ele ficou por 50 dias preso com a mãe, Ana Lúcia, no Hospital Militar de Belo Horizonte. O pai dele, Sálvio, também foi detido. Eles escondiam ferramentas de confeccionar panfletos para manifestações. “Eu fui utilizado como instrumento de tortura contra ela. Eles ameaçaram fazer coisas horríveis comigo. Durante a tortura, o leite da minha mãe secou. Eles davam só uma mamadeira por dia para ela, e ela não tinha leite de manhã. E era um hospital! E era usado como centro de repressão da ditadura”, contou.

Medo acompanha até hoje

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Leta Vieira de Sousa. Ela nasceu em um hospital do Rio de Janeiro, no momento em que seus pais, Jessie e Colombo, estavam presos. Por isso, ela teve que viver junto com sua mãe na cadeia nos seus primeiros meses. “Pra mim, ser uma anistiada política, filha de pessoas que lutaram contra os absurdos da ditadura é, e sempre foi, razão de grande orgulho. No entanto, com esse status de “filha de heróis”, vem também o outro status, o de “filha de terroristas”. Com isso, vem o silêncio, o medo de saberem quem você é e o que pensa. Esse medo me acompanha até hoje”, narrou.

Oito anos sem ver a mãe

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Eduardo Neves da Silva. Foi preso com a mãe, Maria Madalena, quando tinha quatro anos, e levado ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em Belo Horizonte, de onde foi resgatado posteriormente por seu pai, Everaldo. Por oito anos, ele não viu sua mãe, conversavam somente por cartas. “Vem uma marreta e esmigalha tudo, todos os seus sonhos, a sua vida inteira e você tem que tentar segurar o sentido da vida, é um pouco segurar essas migalhas, é tentar fazer disso um todo, e é o que eu tentei fazer”, relatou Eduardo.

Mãe presa, pai morto

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Tessa Moura Lacerda. Em 1973, os pais dela, Gildo e Mariluce – que estava grávida–, foram presos em Salvador. Gildo foi assassinado pelos militares três dias depois e a mãe ficou detida por 42 dias. Tessa conviveu na infância com a incerteza sobre o paradeiro do pai e acreditava na possibilidade de encontrá-lo. “A maior dor é não poder enterrar meu pai. Mais do que qualquer dor física que eu tenha sofrido sem saber e que, de alguma maneira, esteja lá no meu subconsciente, se é que eu tinha o subconsciente naquela época, no embrião”, declarou.

Mãe foi vista irreconhecível

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Edson Luís de Almeida Teles. Em 1972, foram presos no mesmo dia os pais dele, César e Amelinha e, no outro, Edson, a irmã e uma tia. Todos foram levados ao DOI-Codi. César e Amelinha foram extremamente torturados, e os filhos não os reconheceram no dia seguinte. “A cena que mais me ficou presente foi o meu primeiro contato com a minha mãe. Eu estava de costas para a janelinha de uma cela ou de um portão. Ela me chamou, e eu, feliz da vida, reconheci a voz e me virei. Quando eu vi o rosto, eu não a reconheci. Já estava roxeado, desfigurado”, descreveu.

Fonte – O Tempo